Deixem-me começar com uma história que é um exemplo.
Há sessenta anos, a Companhia de Jesus fundou um colégio numa quinta situada no extremo Norte da cidade de Lisboa. (O desenvolvimento da cidade estava ainda tão longe que talvez fosse mais preciso dizer no extremo Norte do concelho de Lisboa). Duplamente elitista pela sua própria natureza e pelas circunstâncias - tratava-se de ensino pago num tempo em que a percentagem de jovens que faziam o percurso escolar era muito reduzida -, a margem de crescimento (e, como tal de criação de massa crítica para a sua viabilidade económica) era muito apertada e cedo o colégio se viu envolvido em dificuldades.
(1968, Arquivo Municipal)
O modo como certas circunstâncias permitiram a sobrevivência da instituição nessas primeiras décadas não é relevante para o exemplo. O que interessa relevar é que, no início da década de setenta, uma parte significativa da quinta foi vendida para urbanização - grosso modo, a fatia paralela à Alameda das Linhas de Torres que começa após o Centro Comercial do Lumiar, hoje ocupada por um conjunto de prédios de habitação e que se estende até aos limites actuais do Colégio.
(Terrenos vendidos. Ao fundo, o actual edifício da Junta de Freguesia do Lumiar, 1968, Arquivo Municipal)
Esteve subjacente a esta venda uma imperiosa necessidade de realizar capital? Sim e não. Mais do que reforçar financeira e, temporariamente, os seus cofres, esta venda correspondeu e fomentou uma mudança de paradigma quase radical, a qual esteve na base da actual dimensão e pujança: ao colégio não lhe bastava ser muito bom se os seus potenciais alunos moravam longe - na hora de escolher, factores como os tempos de deslocação, a distância, pesavam a desfavor face a alternativas mais próximas do centro da cidade. Era necessário alargar tanto o número de potenciais usufrutuários quanto as vantagens comparativas. Com o impulso dado à grande urbanização do Lumiar com esta venda o Colégio atingiu estes objectivos. Objectivos consagrados com a inclusão, nas regras de escolha dos alunos, de um factor ponderativo relativo à proximidade da morada.
A história é mais complexa e muito mais recheada de factos, razões e explicações mas o essencial está indicado e é importante para o que se expõe de seguida.
(Terrenos na actual Alta de Lisboa, 1940, Arquivo Municipal - os edifícios ao fundo ainda existem) A Alta de Lisboa surgiu como solução para a resolução do grave problema social e urbanístico de uma zona de habitações degradadas e precárias, numa operação auto-financiada em que as venda de apartamentos cobririam as despesas de construção dos fogos de realojamentos e da total urbanização da zona.
(Azinhaga de acesso à Alta de Lisboa, 1968, Arquivo Municipal)
Num processo proactivo de valorização do seu produto, entenderam os seus responsáveis ir mais longe no processo, dotando a área de equipamentos de alguma forma incomuns para standart usual nos processos de loteamento privados em Portugal. A Alta tornou-se pois o que parecia um produto comercialmente viável pela conjugação dos seguintes factores:
- Uma boa conjuntura económica nacional e o crescimento da procura de habitação nova;
- Um projecto urbanístico e arquitectónico atractivo, dentro dos limites da capital;
- Uma bem projectada rede de acessos intra e extra-citadinos, aparentemente sobre-dimensionada.
Como o Colégio, um projecto sólido, desenvolvido e apoiado por bons profissionais e gerador de boas expectativas de retorno pessoal e financeiro (satisfação, valorização do produto).
Presentemente, a sensação da maioria dos envolvidos (isto é, moradores) é a de que o projecto vive num limbo de desenvolvimento, com alguns indicadores -
promoções com baixa de preços, incumprimento das datas anunciadas pelo promotor para o início de construção de novos empreendimentos,
atrasos profundos na execução de infra-estruturas viárias essenciais para a circulação interna e para os acessos,
degradação rápida em alguns equipamentos públicos, falta de manutenção de infra-estruturas - a anunciar um prenúncio de crise que a ninguém traz vantagens, a ninguém interessa.
Mais uma vez, alguns factores se podem indicar como principais justificativos para esta situação:
- A diminuição acentuada da bolha de especulação imobiliária em vigor em Portugal nos últimos 20 anos;
- O aumento simultâneo de produtos imobiliários para o mesmo público-alvo na cidade de Lisboa (as promoções da EPUL, a zona da EXPO, a zona a norte do Aeroporto, entre outros);
- O completo desinteresse da Câmara Municipal de Lisboa em cumprir o postulado nos acordos efectuados com a sociedade proprietária da zona, nomeadamente nas expropriações e compras necessárias à disponibilização dos terrenos para implantação das infra-estruturas viárias e nas aprovações, nos prazos previstos por lei, dos processos de licenciamento dos novos produtos;
- A publicidade negativa gerada pela proximidade das zonas de realojamento dos antigos habitantes dos edifícios de venda livre, muita da qual fantasiosa e ou apoiada em receios infundados de quem não conhece o local ou com a intenção declarada de despromover o local face a ofertas concorrenciais.
Como o Colégio, a Alta tem um problema: tem um produto bom que não consegue viabilizar totalmente.
Como inverter a situação?Pode-se chorar pela perda de solidariedade da CML e esperar que, com a nova vereação, os problemas sejam ultrapassados.
Pode-se fazer como a avestruz e, baseando-se na erosão que o tempo causará em alguns destes problemas, esperar pela era dourada que se anuncia para daqui a dez anos (esquecendo-se que, num mundo que se caracteriza pela velocidade da mudança, esperar 10 anos sem nada fazer é um bilhete para o fracasso).
Pode-se esperar que um sismo desvastador crie uma procura espectacular por novas habitações.
Pode-se continuar a apostar numa baixa de preços que só vem criar animosidade de quem comprou o mesmo mais caro, agravar a imagem de produto de segunda linha e criar uma sensação de incoerência face à propalada excelência do mesmo.
Ou pode-se mudar de paradigma.
Ainda que a Alta tenha sido planeada como uma zona urbana mista, isto é com uma predominância de habitação mas com a inclusão de zonas de serviços, toda a acção da Sociedade promotora tem sido até agora a promover primeiro as zonas de habitação (com áreas quase residuais de serviços e que correspondem esmagadoramente às áreas previstas nos pisos térreos dos edifícios). Os serviços têm sido menosprezados. Isto implica necessariamente que todos os habitantes da Alta trabalhem noutro ponto da cidade o que implica que todos sejam obrigados a duas deslocações diárias as quais, mesmo com a conclusão das vias de acesso ao centro, serão sempre morosas.
Porque não usar o exemplo do Colégio e viabilizar a parte habitacional da Alta com os trabalhadores das zonas de serviços a criar? Não estaria criada um vantagem competitiva esmagadora em relação aos produtos concorrentes? Não se poderia então empregar com toda a propriedade e sem receio de ser entendido como publicidade mentirosa o argumento de que o trabalho estaria a 5 minutos de casa?
O tempo em que se criava uma cidade com um centro administrativo e de serviços rodeado de zonas de habitação (sendo a concepção dos Olivais o expoente lisboeta dessa linha de pensamento) está a morrer. Pela qualidade de vida que não cria. Pela despesa energética gerada pelas deslocações diárias. Pela destruição do comércio local que implica (não há tempo nem horários para a frequência de lojas que, pela sua dimensão, não têm capacidade de abertura aos fins-de-semana ou à noite). O tempo é de uma rede urbana de pequenos pólos habitacionais , dispondo de um completo equipamento local (comércio de proximidade, instalações desportivas e escolares básicas, centro de saúde, pólos culturais, serviços, pequena indústria), e agregados em rede de modo a usufruir dos grandes equipamentos (hospital central, centro de espectáculos de grande dimensão, universidade).
A Alta pode iniciar esse novo paradigma e voltar a significar uma nova forma de fazer cidade. Para isso precisa de urgentemente,
inverter o previsto e iniciar rapidamente a construção das malhas previstas no Projecto de Urbanização (PUAL) para zonas de serviços. Aumentar a oferta a empresas e criar condições para a sua instalação no bairro.
Deixar a habitação para uma segunda fase, depois de criar mais apetência para a mesma. Negociar a implantação de equipamentos que recorram ao emprego de muitos funcionários (promovendo deste modo o emprego para as populações dos PER e ajudando à sua inclusão social), sendo a proposta para implantação das novas instalações do Instituto Português de Oncologia sugerida neste blog um bom exemplo.
Terá a SGAL a coragem e a capacidade para esta mudança? Terá a vontade? Esperemos pela resposta. Pode ser que apareça.
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