Onde começa e acaba uma obra de arte? Na ideia do criador, na obra em si? Numa arte performativa, uma peça de música ou de teatro, a obra de arte está na ideia, na realização do performer, ou nos dois? Ou a obra de arte só existe na plenitude em cada espectador? Que som faz uma árvore a cair numa floresta, se ninguém lá estiver?
Mors stupebit, et natura,
Cum ressurget creatura,
Judicanti responsura.
A morte e a natureza ficarão estupefactas quando a criatura comparecer para ser julgada pelo Juiz.
Nicolai Ghiaurov em Requiem de Verdi, dirigido por Herbert von Karajan.
“Os olhos são a janela da alma”, diz Beatriz Batarda, na entrevista Pessoal e... Transmissível da TSF de 16 de Janeiro de 2007, a propósito de uma metodologia de trabalho recente na sua ainda curta mas preenchida carreira de actriz. Pressupondo o olhar como elemento mais forte de toda a linguagem não-verbal, que exterioriza o que as palavras têm por vezes dificuldade em explicar, interessa a um actor, que não queira ser traído pelo que sente, por vezes em contradição com a personagem aprendida mas talvez ainda não encarnada, aprender a controlar toda a sua capacidade expressiva. O curioso deste processo de aprendizagem é que os olhos não servem apenas para a exteriorização da personagem, mas também, através de todo o trabalho consciente de como olhar, como mexer os olhos, as pálpebras, da dissecação das questões mecânicas, músculo a músculo, um processo de interiorização do papel a representar, tornando-o mais real, mais sentido e verdadeiro, mais verosímil para o espectador, complementando-se ao trabalho de leitura e memorização do texto e da criação intelectual da personagem.
Outro elemento que podemos cruzar é inventariação dos movimentos oculares associados às imagens visuais, auditivas, linguísticas ou cinestésicas, divididas entre evocações e projecções, que são parte de uma corrente da psicologia cognitiva do final do séc. XX, chamada Programação Neuro-Linguística. Trocando em miúdos, defendem os investigadores que as pessoas fazem movimentos oculares involuntários quando acedem às memórias visuais, auditivas ou tácteis. Por exemplo, se perguntar a alguém de que cor é a sua camisola preferida, ela irá provavelmente olhar para o canto superior direito [de quem vê de frente], mas se pedir para imaginar essa mesmo camisola com outras cores completamente diferentes, os seus olhos manter-se-ão em cima, mas agora no lado esquerdo. A diferença de lado esteve na recordação [lado direito] de uma imagem já conhecida e na construção [lado esquerdo] de outra, não existente. O olhar oblíquo para cima está associado às imagens visuais, o olhar paralelo ao chão às imagens auditivas, e o oblíquo inferior às imagens tácteis (cinestésicas) e verbais.
Encaixar tudo isto numa mesma história é talvez um pouco forçado, mas foi o que me apeteceu quando vi Julian Konstantinov, o baixo da versão do Requiem de Verdi dirigida por Claudio Abbado, a cantar o texto mors stupebit. Ao contrário de Ghiaurov, o olhar não é focado num ponto no infinito, mas sujeito a pequenos movimentos oculares.
Cenicamente funciona muito melhor o tipo de olhar do Ghiaurov, em comunicação directa com Deus, talvez sereno, talvez estarrecido, mas incapaz de desviar a atenção do Juiz. Um Requiem é uma missa de defuntos, tema que inspirou diversos compositores ao longo dos tempos, desde Palestrina, Mozart, Brahms ou Ligeti, a compor música para enobrecer a cerimónia. Perde portanto a sua função liturgica quando é executado propositadamente para uma gravação em DVD, ao vivo numa sala de concertos, ou até numa igreja, se o for apenas para a fruição musical. Mas isso não implica que se faça ou ouça a música sem consciência dos seus originais propósitos, mesmo que apenas embrionários. E para compensar essa perda de espiritualidade pelo despropósito do lugar ou alteração da função, serve a encenação para a dramatizar.
Parece-me sem qualquer dúvida ser esta a postura de Nicolai Ghiaurov, consciente do ângulo das câmaras, alertado para as secções de grande angular ou grande plano. Em oposição, a gravação do Requiem pelo Abbado, feita em concerto, está muito mais próxima de uma performance meramente musical do que teatral. Foca muito mais o lado atlético de uma performance musical (que existe em elevadíssimo grau) do que o fingimento da dor que deveras sente.
E o que os nossos olhos vêem reflecte-se não no que os ouvidos ouvem, mas na junção destas duas, imagem e som, com todas as nossas referências, as memórias que temos, conhecimentos ou vivências, umas conscientes e intelectualizáveis, outras escondidas num baú esquecido num sótão escuro, quando esse duplo input é tratado pela complexa rede de neurónios. Quando tudo joga favoravelmente, o resultado pode emocionar-nos ou, senão, ir por aí abaixo no interesse suscitado até à completa indiferença.
Cenicamente Konstantinov perde para Ghiaurov. Vocalmente também, mas isso é outra história. Ou talvez não! Poderá Ghiaurov, com uma voz fácil e de grande potencial inato que, apesar de a desenvolver e melhorar, nenhuma escola lhe poderia dar, concentrar-se apenas na sua relação com a morte e com Deus? Relacionar-se, no fundo, não com a música em si, como um fim, mas com o tema que a inspirou, o confronto do homem com a eternidade e com o Criador, sendo a música então um meio? Estará Konstantinov ainda preso a questões que se queriam como meio e não fim, mas das quais depende o sucesso da missão musical, como a segurança nas notas, a dicção do texto, ou, mais provavelmente ainda, a descontracção da laringe e a adaptação do corpo para o tornar num instrumento ressoador? Não deixa de ser curioso que a maior parte dos movimentos oculares feitos por Konstantinov é para o seu lado direito inferior, precisamente o que está ligado à cinestesia, às sensações tácteis e motoras.
Ou está Ghiaurov naturalmente acima dessas preocupações, por uma rara combinação de características físicas e psicológicas, ou conseguiu, através de uma boa prática de estudo, tornar reflexos todos esses mecanismos, deixando de ter de pensar conscientemente neles, libertando a mente para outros pormenores mais interessantes. Como no plano que se segue, que parece tirado de um filme de Eisenstein. Não sei se foi propositado, ou se a aculturação de Ghiaurov é tão forte que qualquer coisa que faça tem um indissociável sabor soviético.
Oro supplex et acclinis,
Cor contritum quasi cinis.
Gere curam mei finis.
Prostrado ante Vós, suplicante, com o coração esmagado, como reduzido a cinzas, Vos imploro, ó Senhor, que tenhais piedade de mim no momento da morte.
1 comentário:
É o que eu costumo dizer, não chega saber cantar bem. É preciso expressividade e carácter.
Enquanto Ghiarov assumiu um personagem, Konstantinov canta apenas como quem parece ir receber uma nota qualquer no final da actuação, como quem pergunta constantemente para si mesmo: Será que estou a cantar bem, que não me estou a enganar e que vão gostar no fim?
É claro que todos os artistas de palco têm essas preocupações, mas por vezes conseguem-se boas interpretações falando com o corpo, com o rosto, mais que com o instrumento.
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