Panaceia lisboetamente universal para a recuperação de qualquer acamado, este caldo encontra-se praticamente em vias de extinção na sua forma original face ao progressivo desaparecimento da matéria-prima essencial: uma galinha “caseira”, criada com amor e engordada com esmero.
Não faltariam na Lisboa secular - na Lisboa de saguões onde raparigas da terra trazidas a servir se deixavam engraçar por marçanos afilhados subindo a hierarquia laboral à custa de muito transportar calçadas e escadas acima as compras de entediadas freguesas, na Lisboa de logradouros feitos quintais de porteiras enjauladas em cubículos insalubres, na Lisboa de recantos roubados a traseiras escondidas – em capoeiras improvisadas onde, entre “cócós” e pedrezes, capões e galarós, poedeiras e pintadas, cresciam e sobravam dignos exemplares para despertar a gula ou anular o fastio de cada um, conforme a ocasião.
Lisboa estava cheia de “criação”.
(E repare-se como os diversos significados do termo evoluíram em conjunto: dizia-se de quem se sabia comportar socialmente que era educado, que tinha maneiras, que era bem-criado (provavelmente pelas canjinhas que a velha criada ou a avó ou a mãezinha tinham preparado na infância ou adolescência, prolongadas por certo, pela mão consciente da esposa burguesa); hoje em dia, queixam-se os mais velhos – perante as ignorâncias da mocidade, os atropelos dos novos-ricos, o desleixo de meio-mundo – de que isto é um país de mal-criados. Pois mal-criados seremos, se nem já criação há em número suficiente para encher de produtos legítimos a mesa de todos nós.)
E a que chave haveria de recorrer o José Maria oitocentista, lisboeta de adopção, para abrir um entediado e cosmopolita Jacinto às delícias do sentir português, senão à inevitável canja?:
“(...) era de galinha e rescendia. Provou e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, um espanto – Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
- Também lá volto! – exclamava Jacinto, com uma convicção imensa. – É que estou cá com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avidamente a sopeira.(...)”
[in A Cidade e as Serras, José Maria Eça de Queiroz,]
“Canja” era, em similitude com o prato, tudo o que se fazia depressa e bem. Hoje em dia, nada parece ser “canja” neste Portugal que começou a entristecer nas palavras dum outro lisboeta órfão de sopas caseiras e não pára de se desconsolar. De nos desconsolar.
Perante umas serras desertas e uma cidade que de noite desaparece...
1 galinha gorda com miúdos – 1 cebola – salsa – 2l de água – arroz agulha, q.b.
Colocar a galinha na água salgada fria (de modo a que permitir que se desprenda da ave a maior quantidade possível de gordura e sucos) juntamente com a cebola e a salsa. Salgar (pouco! A saúde agradece). Cozer em lume brando, gentilmente, até a carne estar tenra e se desprender dos ossos (atenção aos frangos de aviário: ao fim de uma mão-vazia de minutos já o corpo ameaça desagregação, não constituindo sinal de canja rica. Aliás, ao usar frangos de aviário deve ter-se presente a menor valia que os mesmos oferecem).
Entretanto, cozer o arroz na proporção de 1-4. Deixar ligeiramente al dente e lavar em abundante água de modo a ficar bem solto.
Servir a canja com o arroz, a galinha desfiada e um esguicho de limão.
Duas ou três folhas de hortelã serão bem vindas por quem delas gostar.
NOTA: Pode-se estranhar a cozedura, à parte, do arroz. Preciosismo de quem precisa de mais de uma sessão para processar todo o caldo: se reaquecido, o arroz ultrapassa o ponto de cozedura e transforma-se numa pré-papa desagradável. Acrescentado frio ao caldo fumegante reaquecido não perde qualidades.
Lisboa estava cheia de “criação”.
(E repare-se como os diversos significados do termo evoluíram em conjunto: dizia-se de quem se sabia comportar socialmente que era educado, que tinha maneiras, que era bem-criado (provavelmente pelas canjinhas que a velha criada ou a avó ou a mãezinha tinham preparado na infância ou adolescência, prolongadas por certo, pela mão consciente da esposa burguesa); hoje em dia, queixam-se os mais velhos – perante as ignorâncias da mocidade, os atropelos dos novos-ricos, o desleixo de meio-mundo – de que isto é um país de mal-criados. Pois mal-criados seremos, se nem já criação há em número suficiente para encher de produtos legítimos a mesa de todos nós.)
E a que chave haveria de recorrer o José Maria oitocentista, lisboeta de adopção, para abrir um entediado e cosmopolita Jacinto às delícias do sentir português, senão à inevitável canja?:
“(...) era de galinha e rescendia. Provou e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, um espanto – Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
- Também lá volto! – exclamava Jacinto, com uma convicção imensa. – É que estou cá com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avidamente a sopeira.(...)”
[in A Cidade e as Serras, José Maria Eça de Queiroz,]
“Canja” era, em similitude com o prato, tudo o que se fazia depressa e bem. Hoje em dia, nada parece ser “canja” neste Portugal que começou a entristecer nas palavras dum outro lisboeta órfão de sopas caseiras e não pára de se desconsolar. De nos desconsolar.
Perante umas serras desertas e uma cidade que de noite desaparece...
1 galinha gorda com miúdos – 1 cebola – salsa – 2l de água – arroz agulha, q.b.
Colocar a galinha na água salgada fria (de modo a que permitir que se desprenda da ave a maior quantidade possível de gordura e sucos) juntamente com a cebola e a salsa. Salgar (pouco! A saúde agradece). Cozer em lume brando, gentilmente, até a carne estar tenra e se desprender dos ossos (atenção aos frangos de aviário: ao fim de uma mão-vazia de minutos já o corpo ameaça desagregação, não constituindo sinal de canja rica. Aliás, ao usar frangos de aviário deve ter-se presente a menor valia que os mesmos oferecem).
Entretanto, cozer o arroz na proporção de 1-4. Deixar ligeiramente al dente e lavar em abundante água de modo a ficar bem solto.
Servir a canja com o arroz, a galinha desfiada e um esguicho de limão.
Duas ou três folhas de hortelã serão bem vindas por quem delas gostar.
NOTA: Pode-se estranhar a cozedura, à parte, do arroz. Preciosismo de quem precisa de mais de uma sessão para processar todo o caldo: se reaquecido, o arroz ultrapassa o ponto de cozedura e transforma-se numa pré-papa desagradável. Acrescentado frio ao caldo fumegante reaquecido não perde qualidades.
9 comentários:
Pedro, estas receitas estão para a gastronomia como as partituras estão para a música. O guia é bom, mas a mão que mistura os ingredientes tem de pertencer a um mestre experiente. Temos de combinar rapidamente um jantar para mostrares o teu talento!
Para mim, a galinha, além de miúdos, deve ter "ovinhos", não concordas?
Reli a Cidade e as Serras há pouco tempo. Além da passagem da canja, lembro-te uma sobre favas, caso decidas escrever sobre elas. Quando Jacinto, esfomeado depois de um passeio pelas serras, fica desconsolado com o almoço, que eram favas. E depois a revelação: "Ah, destas nem em Paris!".
Joana, as favas do Jacinto chegam sob a forma de um arroz divinal depois da canja ser devorada.
Cá chegarão, cá chegarão...
Tiago: é quando vocês quiserem (só não sei se estarei nos meus dias Pogorelich ou Arrau... mas nestas coisas da cozinha tradicional é suposto ser-se escola russa, não é?...)
Favas já é mais comigo (lembro-me bem dessa passagem). Também gostava de canja e com hortelã, mas deixei de comer há muito e não só por causa da "mania" de ter deixado a carne (até sei onde se compra boa galinha biológica, mas tal como com o porco, sou alérgica, mesmo, e já me explicaram que tem a ver com o tipo de alimentação de ambos os "bichos", que tem muita porcaria, mesmo se biológica, enfim). Na sua vez costumo optar por uma massada de peixo, que adoro, com a mesma hortelã.
Pedro, não percebo a bandeirinha! (Cruz Vermelha? Suiça?)
Queria dizer peixe. E já percebi (não li o acamado da introdução). Acho que a história da canja de galinha para doentes é um mito. A ideia dos conselhos médicos é mais a de um caldo quente e reconfortante com arroz, e não com galinha. Pode ser caldo de cenoura com arroz, por exemplo.
Mito ou não, Ana, era a receita tradicional dos lisboetas (suponho que não seria só dos lisboetas) para qualquer acamado. Gripe? Uma canjinha para reconfortar. Parturiente? Uma canjinha para dar forças. Em recuperação de uma doença prolongada? Canjinha para robustecer.
Penso que terá a ver com as proteínas da carne conjugadas com os carbohidratos do arroz, o que uma sopa de legumes não terá (sim, já sei das vantagens dos legumes e das desvantagens do excesso de proteínas, estou só a referir os porquês da panaceia).
Se a canja levar igualmente os "ovinhos" que a Joana referia, então torna-se mesmo uma bomba.
Em vez de mito é antes tradição. Que, como todas as tradições, terá uma base de experimentação secular com resultados visíveis (se não, teria sido abandonada). E é mesmo de tradições que esta série trata.
Se a criança tá doente dá-lhe com uma canja... Para mim nem em comprimidos :)))
Sim, sei que é tradição, dei apenas a minha opinião. O arroz tem de facto pouca proteína, mas se se juntar feijão, por exemplo, (o tradicional feijão com arroz dos brasileiros, considerado um prato dos pobres, é até bastante rico), cuja absorção é facilitada pelo amido contido no arroz, já temos proteína.
Explico então porque falei em "mito": a cisteína é o aminoácido (proteína) contido na galinha (mas também nas outras carnes e no peixe, produtos lácteos e ovos) que ajuda no combate às gripes. Aliado ao facto do caldo ser serviço quente (o que facilita a expectoração) a cisteína liberta-se enquanto a carne coze. A razão é que a cisteína produz uma enzima que ajuda a combater os radicais livres que o organismo produz (por influência do consumo de tabaco ou da poluição atmosférica, por exemplo), a desintoxicar e a fortalecer o sistema imunológico. No entanto ao contrário de outros aminoácidos a cisteína é "não essencial", ou seja, é fabricada pelo nosso corpo, pelo que não necessitamos de a ingerir sob a forma de alimento. Claro que quando o corpo está debilitado, no caso de uma gripe, a ingestão ajuda, mas também pode ser sobre a forma dos ovinhos que referes ou do peixe que eu referi (curioso ou não, é o mesmo princípio usado nos medicamentes de combate à gripe/congestionamento das vias respiratórias).
Mas para quem gosta (eu também gostava) e não seja alérgico a carne de aves acho muito bem que coma esta canjinha.
E continua com esta série que está muito bem.
Esqueci-me de dizer que o caldo só com arroz que referi é para outro tipo de doenças (estômago) e às vezes confundem-se as "receitas".
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