terça-feira, 18 de abril de 2006

As Paixões de Bach



J.S. Bach escreveu duas Paixões para evocar a morte de Cristo nas celebrações religiosas da Páscoa. Para isso inspirou-se nos evangelhos de S. João e de S. Mateus. As obras foram escritas para coro, orquestra e cantores solistas e são contituídas por momentos narrativos, onde o evangelista canta acompanhado por um grupo reduzido de instrumentos, chamado baixo-contínuo, normalmente cravo, viola da gamba, alaúde ou orgão, as possibilidades são muitas, e outros momentos de reflexão poética entre a narrativa através de árias, cantadas por solistas e acompanhadas pela orquestra, e corais a quatro vozes cantados pelo coro. Personagens como Jesus, Pedro ou Pilatos são representadas pelos cantores solistas. A obra não é encenada, tendo sido originalmente escrita para ser tocada durante a liturgia. No entanto, é agora executada em salas de concerto.

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Não querendo detalhar apenas uma Paixão, optei por mostrar uma pequeníssima parte de cada uma delas, tentando motivar quem não conhece a ouvi-las na íntegra. Deixo-vos porém um conselho, procurem ouvir a obra com a tradução do texto. Bach usou o evangelho em alemão, nas directivas da Reforma Luterana, para aproximar a liturgia dos crentes. Apesar da música ser deslumbrante por si só, escutá-la sem conhecer o significado das palavras cantadas e privar-se da genialidade que Bach colocou à nossa disposição fazendo corresponder de forma tão intíma a música com o texto, é um desperdício incompreensível. Ouvir uma obra como esta é uma experiência profundamente espiritual, mesmo que não se professe uma religião cristã.




Na Paixão segundo S. João, a abertura é feita pela orquestra e coro, de uma forma semelhante às tragédias gregas. Ainda antes da narrativa começar, é criado um ambiente denso, pessimista, premonitório. O efeito é conseguido através das constantes dissonâncias criadas nos sopros (flautas e oboés) que vão chocando num compasso para resolver essa tensão no seguinte, e aumentada pela nota pedal dos violoncelos (a nota mais grave) que se mantém cerca de 30 segundos, depois ouve-se uma marcha harmónica até perto da entrada do coro, com as palavras:

Herr, unser Herrscher, dessen Ruhm
In allen Landen herrlich ist!

Zeig uns durch deine Passion,
Daβ du, der wahre Gottessohn,
Zu aller Zeit,
Auch in der gröβten Niedrigkeit,
Verherrlicht worden bist!


Senhor, nosso Soberano, cuja Glória
Resplandece em toda a Terra!

Mostra-nos por meio da tua Paixão,
Que Tu, o verdadeiro Filho de Deus,
Sempre foste glorificado,
Mesmo nos tempos mais sobrios!




De salientar o tratamento dado por Bach à palavra Herrscher (Soberano), estendendo-a no tempo, cantada em 34 notas, como forma de a enfatizar.




Outra cena pungente da Paixão segundo S. João é a da negação de Pedro. Jesus tinha-o já previsto e dito a Pedro: "Em verdade te digo que esta mesma noite, antes que o galo cante, me negarás três vezes.", a que Pedro e os restantes apóstolos responderam: "Ainda que tenha de morrer contigo, não te negarei."

A cena começa com um recitativo onde o Evangelista João diz, depois da prisão de Jesus: "E Anás levou-o, manietado, ao Pontífice Caifás. Simão Pedro estava lá também, aquecendo-se. Perguntaram-lhe: Não és tu um dos seus discíplos?"

De salientar a forma como Bach atribui ao coro a função da pergunta a Pedro. Uma turba inquisitória e desordenada, como se ouve pelas entradas das quatro vozes (soprano, contralto, tenor e baixo) interrogando-o: "Bist du nicht seiner Jünger einer?"

A narrativa passa de novo para o Evangelista: "Ele negou e disse:"

Pedro Ich bin's nicht! (Não sou eu!)
Evangelista Disse-lhe um dos servos do pontífice, perante aquele a quem Pedro cortara a orelha:
Servo Não te vi eu com ele no horto?
Evangelista Pedro negou de novo e imediatamente o galo cantou. Então Pedro lembrou-se das palavras que Jesus lhe tinha dito e, saindo, chorou amargamente.

Todo o ambiente musical se altera a seguir ao galo cantar, antes da recordação e arrependimento de Pedro. É dilacerante o contraponto cromático entre as palavras weinete bitterlich (chorou amargamente), cantadas pelo Evangelista, e a parte de baixo contínuo realizada pela orquestra.




Esta cena também existe naturalmente na Paixão segundo S. Mateus. A ária que se segue a esta dor de Pedro é inesquecível.



Meu Deus, tende compaixão de mim e das minhas lágrimas. Vede como choram o meu coração e os meus olhos.



Continuando na Paixão segundo S. Mateus, vamos directamente ao clímax emocional, o momento de fraqueza de Jesus e a morte, logo após. Uma passagem de grande dor e tristeza. O ambiente quente e pesado é acentuado pelo baixo contínuo lento e pastoso feito pelo cravo, violoncelos e orgão.

Evangelista Desde a hora sexta e hora nona as trevas cobriram toda a terra. E à hora nona Jesus chorou e gritou:
Jesus Eli, Eli, lama sabachthani?
Evangelista Que significa: "Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?" Alguns dos que ali estavam, ao ouvi-lo, disseram:
Povo Ele clama por Elias.
Evangelista E imediatamente um deles tomou uma esponja, embebeu-a em vinagre, pô-la sobre uma cana e deu-lha a beber. Outros, porém, diziam:
Povo Deixa-o, vejamos se Elias vem salvá-lo!
Evangelista Jesus, soltando de novo um grande brado, e expirou (und verschied).






Segue-se um comovente coral de redenção.



Quando eu tiver de partir, não te separes de mim!
Quando eu tiver de morrer, pelo teu sofrimento não me deixes sofrer.

9 comentários:

Rodrigues disse...

Enaaaa, que saudades da São João! Agora que fizemos a São Mateus, dá-me saudades da outra... é sempre assim!
;)

Tiago disse...

E só não pus a vossa versão porque a Gulbenkian continua teimosamente a não querer gravar. Adorei a vossa versão, R.! Sobretudo o coro!

Pedro Veiga disse...

Aquele coro, aquela dinâmica, aquela disposição das vozes, o movimento dos instrumentos e dos corpos, tudo aquilo correu muto bem. Ainda não tinha ouvido uma versão como aquela.
É uma grande sorte poder ouvir música assim tocada e cantada!

Rodrigues disse...

Esse foi, precisamente, o comentário mais ouvido por entre o coro: "Mas por que razão não gravamos isto?!!" :(

Tiago disse...

Isso e o Freitas Branco que fizeram há meses. Então esta é que não entendo mesmo.

susana disse...

Obrigada...

Rodrigues disse...

O Freitas Branco vai ser gravado em Junho. ;)

Tiago disse...

Ah! Óptima notícia, R.!

Susana, não tens de agradecer. Conto fazer semanalmente qualquer coisa sobre música. Não tem a ver com a Alta de Lisboa? Tem, tem. A Alta terá um centro cultural projectado pelos arq. Rogério Cavaca e Siza Vieira.

Anónimo disse...

Sou brasileiro e sempre quis conhecer a Paixão segundo Mateus, de Bach.
Muito obrigado por disponibilizar algumas partes, sobretudo pelos valiosos comentários!!

Ronaldo Medeiros