Vivemos num país de Pinóquios Oficiais, não por lhes crescer o nariz de cada vez que lhes sai uma mentira pela boca fora (lá se ia o resto das florestas tropicais para acrescentos em madeira exótica) mas por terem a cara de pau de dizer as mais extraordinárias coisas sem que ninguém lhes caia em cima a exigir explicações.
Ainda estou a remoer os notáveis argumentos de ministra e secretário de estado a propósito da melhoria de conhecimentos dos alunos do secundário expressa na subida das médias de exame. Ontem, dei uma vista de olhos a várias provas do 12º ano e pude comprovar à custa de quê essa subida de conhecimentos surgiu. Mais preocupante é o nível que é esperado de quem se apresta ou a entrar no mundo do trabalho ou a entrar no escasso clube (de acordo com as estatísticas europeias) dos licenciados portugueses.
Só alguns exemplos:
1. Prova de Francês - "Iniciação" (o que, presumo, significará para alunos com 3 anos de Francês)
a) Fotografia da montra de uma livraria, com a seguinte legenda (traduzindo) "A sopa dos livros" ; Livros antigos compra-venda
Pergunta por escolha múltipla: "A sopa dos livros é
a)uma biblioteca;
b) um restaurante;
c) uma livraria;
d) uma papelaria"
Se o exame fosse feito para crianças do 4º ano... Não será de esperar que um marmanjo com 18 anos saiba reconhecer a diferença entre uma montra e uma biblioteca ou que, quase só pela fonética, perceba que "livre" é "livro"? Que grau de dificuldade ou exigência de compreensão de um texto numa língua estrangeira é este?
É a pergunta inserida para cuidar que ninguém tenha um zero na pauta ou a expectativa de inteligência é tão baixa que - repito, são alunos com 18 anos - se tem de mastigar a pergunta até ficar nesta papa?
2. Prova de Português
a) "Com a afirmação «esta frase e esta cena viajaram comigo para sempre» (linha 14), o autor quer dizer que
A. se sentia marcado para toda a vida por aquela frase e por aquela cena.
B. transportava consigo, sempre que viajava, um livro sobre David Crockett.
C. se lembrava daquela frase e daquela cena sempre que viajava.
D. tinha aquela frase gravada na pasta que usava em viagem."
b) "A perífrase verbal em «e ao longo dos últimos anos fui publicando» (linhas 1 e 2) traduz uma acção
A. momentânea, no passado.
B. repetida, do passado ao presente.
C. apenas começada, no passado.
D. posta em prática, no momento."
Pelas alternativas em jogo e pelas frases das quais se procura perceber se o leitor as compreendeu, podemo-nos aperceber da imagem de iliteracia em jovens de 18 anos que os interrogadores têm dos alunos submetidos a exame.
No entanto, o mais extraordinário é este exemplo:
"O uso repetido do nome «David Crockett» (linhas 6, 7, 12-13, 16, 20, 24)
A. constitui um mecanismo de coesão lexical.
B. assegura a progressão temática.
C. constitui um processo retórico.
D. assegura a coesão interfrásica do texto."
Repare-se como se duvida se um aluno percebe o que "ao longo dos anos fui publicando" quer dizer mas se espera que o mesmo saiba exactamente o que um "mecanismo de coesão lexical" ou uma "coesão interfrásica" querem dizer. Notável.
Mais dois exemplos, tirados do mesmo grupo de questões (assinalar como verdadeiro ou falso; "V" para verdadeiro e "F" para falso):
"O segmento textual «Este livro reúne alguns dos textos que mensalmente e ao longo dos últimos anos fui publicando» (linhas 1 e 2) constitui um acto ilocutório directivo."
"Em «molhando-lhe a testa com água, tratando das suas feridas e vigiando o seu coma» (linhas10 e 11), as formas verbais «molhando», «tratando» e «vigiando» traduzem o modo continuado como a índia cuidava de David Crockett."
No mesmo plano de dificuldade, saber indentificar essa personagem misteriosa que dá pelo nome de acto ilocutório e se o gerúndio traduz ou não uma acção continuada. (Estou a imaginar um examinando a pensar "lá que é uma cena ilocutória, claro, tá-se a ver agora se vigiando é só uma vez ou mais...").
Ainda mais um: "O conector «Porém» (linha 22) introduz uma relação de oposição entre o que anteriormente foi dito e a ideia exposta posteriormente." É aceitável que ainda se pergunte o significado de "porém" a alguém que fala e escreve e lê português há pelo menos 12 anos?
Com este grau de exigência/facilitismo que leitores de textos poderemos esperar encontrar nos serviços públicos e privados de aqui a alguns anos? Se a nossa relação com os serviços públicos são o que são hoje em dia, como será no futuro conseguir o licenciamento de uma obra, ver atendida uma reclamação de impostos ou esperar que um governante/autarca resolva os problemas sob seu pelouro?
Ainda estou a remoer os notáveis argumentos de ministra e secretário de estado a propósito da melhoria de conhecimentos dos alunos do secundário expressa na subida das médias de exame. Ontem, dei uma vista de olhos a várias provas do 12º ano e pude comprovar à custa de quê essa subida de conhecimentos surgiu. Mais preocupante é o nível que é esperado de quem se apresta ou a entrar no mundo do trabalho ou a entrar no escasso clube (de acordo com as estatísticas europeias) dos licenciados portugueses.
Só alguns exemplos:
1. Prova de Francês - "Iniciação" (o que, presumo, significará para alunos com 3 anos de Francês)
a) Fotografia da montra de uma livraria, com a seguinte legenda (traduzindo) "A sopa dos livros" ; Livros antigos compra-venda
Pergunta por escolha múltipla: "A sopa dos livros é
a)uma biblioteca;
b) um restaurante;
c) uma livraria;
d) uma papelaria"
Se o exame fosse feito para crianças do 4º ano... Não será de esperar que um marmanjo com 18 anos saiba reconhecer a diferença entre uma montra e uma biblioteca ou que, quase só pela fonética, perceba que "livre" é "livro"? Que grau de dificuldade ou exigência de compreensão de um texto numa língua estrangeira é este?
É a pergunta inserida para cuidar que ninguém tenha um zero na pauta ou a expectativa de inteligência é tão baixa que - repito, são alunos com 18 anos - se tem de mastigar a pergunta até ficar nesta papa?
2. Prova de Português
a) "Com a afirmação «esta frase e esta cena viajaram comigo para sempre» (linha 14), o autor quer dizer que
A. se sentia marcado para toda a vida por aquela frase e por aquela cena.
B. transportava consigo, sempre que viajava, um livro sobre David Crockett.
C. se lembrava daquela frase e daquela cena sempre que viajava.
D. tinha aquela frase gravada na pasta que usava em viagem."
b) "A perífrase verbal em «e ao longo dos últimos anos fui publicando» (linhas 1 e 2) traduz uma acção
A. momentânea, no passado.
B. repetida, do passado ao presente.
C. apenas começada, no passado.
D. posta em prática, no momento."
Pelas alternativas em jogo e pelas frases das quais se procura perceber se o leitor as compreendeu, podemo-nos aperceber da imagem de iliteracia em jovens de 18 anos que os interrogadores têm dos alunos submetidos a exame.
No entanto, o mais extraordinário é este exemplo:
"O uso repetido do nome «David Crockett» (linhas 6, 7, 12-13, 16, 20, 24)
A. constitui um mecanismo de coesão lexical.
B. assegura a progressão temática.
C. constitui um processo retórico.
D. assegura a coesão interfrásica do texto."
Repare-se como se duvida se um aluno percebe o que "ao longo dos anos fui publicando" quer dizer mas se espera que o mesmo saiba exactamente o que um "mecanismo de coesão lexical" ou uma "coesão interfrásica" querem dizer. Notável.
Mais dois exemplos, tirados do mesmo grupo de questões (assinalar como verdadeiro ou falso; "V" para verdadeiro e "F" para falso):
"O segmento textual «Este livro reúne alguns dos textos que mensalmente e ao longo dos últimos anos fui publicando» (linhas 1 e 2) constitui um acto ilocutório directivo."
"Em «molhando-lhe a testa com água, tratando das suas feridas e vigiando o seu coma» (linhas10 e 11), as formas verbais «molhando», «tratando» e «vigiando» traduzem o modo continuado como a índia cuidava de David Crockett."
No mesmo plano de dificuldade, saber indentificar essa personagem misteriosa que dá pelo nome de acto ilocutório e se o gerúndio traduz ou não uma acção continuada. (Estou a imaginar um examinando a pensar "lá que é uma cena ilocutória, claro, tá-se a ver agora se vigiando é só uma vez ou mais...").
Ainda mais um: "O conector «Porém» (linha 22) introduz uma relação de oposição entre o que anteriormente foi dito e a ideia exposta posteriormente." É aceitável que ainda se pergunte o significado de "porém" a alguém que fala e escreve e lê português há pelo menos 12 anos?
Com este grau de exigência/facilitismo que leitores de textos poderemos esperar encontrar nos serviços públicos e privados de aqui a alguns anos? Se a nossa relação com os serviços públicos são o que são hoje em dia, como será no futuro conseguir o licenciamento de uma obra, ver atendida uma reclamação de impostos ou esperar que um governante/autarca resolva os problemas sob seu pelouro?
5 comentários:
Se bem me recordo a minha geração foi apelidada de "geração rasca" (daquelas manifestações em que se mostrava o rabo a Manuela Ferreira Leite..).
Se calhar agora chama ignorante às gerações seguintes.
Podemos encontrar textos do género pelo menos desde o inicio do século.
Se calhar somos todos maus a avaliar o contexto em que outros vivem e se desenvolvem.
em relação a mais este post sobre este assunto...em que ficamos?
Afinal o exame era fácil ou dificil?
Tinha perguntas fáceis e outras dificeis? dos 19 anos que estudei...sempre tive exames assim.
Qual a novidade?
miguel
Concordo Miguel. Gostaria de ver este pessoal a resolver o exame...
Eu sou da mesma geração, a tal "rasca", e nunca tive exames assim. Não com esta convivência entre perguntas obscuras e outras pueris. Se calhar é por isso que não preciso de perguntar qual a opinião do autor do post sobre os exames deste ano.
caro Tiago,
O que chama "obscuro" tb costuma ser apelidado de "dificil" e o que refere como "pueril" é, normalmente, classificado como "fácil".
Não sei se apenas está a jogar com a semântica ou se tem outro objectivo.
Se os exames que fazia não tinham perguntas fáceis e outras dificeis...como é que se distinguiam os alunos?
Eram todas fáceis e tudo tinha 20? Todas dificeis e chumbavam todos?
Como é que consegue avaliar estas perguntas ou a cosntrução global do exame? Conhece o exame todo e a correcção? o programa? os objectivos?
Mais importante..é o Tiago especialista na construção de exames?
É importante que seja, caso contrário pode estar a falar sobre um tema do qual só conhece uns "bitaites" que leu nuns jornais (provavlemente um pasquim chamado Público...) ou uns bloques.
Não acredito que o Tiago o fizesse com tanta leveza.
No que me diz respeito, reconheço não ter a formação e informação suficientes para avaliar correctamente a "qualidade" dos exames. Mas sei que não é com "bitaites" que formo uma opinião.
Miguel
Miguel, desculpe lá a colherada mas aquilo que você está a fazer aqui também não se encaixa nessa actividade tão subestimada de "dar uns bitaites?" Porque serão os seus bitaites mais relevantes que os do Tiago?
Enviar um comentário