Pedro Magalhães
Público, 28.04.2008
A "ideia": pegar em milhares de milhões de euros dos contribuintes e criar um serviço para uma minoria de cidadãos
Há dias, foi apresentado o projecto de ampliação da Gare do Oriente para a alta velocidade. Santiago Calatrava vai receber mais de seis milhões de euros e promete aproveitar a ocasião para emendar algumas das - note-se o encantador eufemismo - "falhas" do projecto anterior. Abrilhantando ainda mais a ocasião, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, avançou a proposta de encerrar a estação de Santa Apolónia à actividade ferroviária, transformando-a em terminal de cruzeiros. Quanto aos terrenos afectos, deveriam ser vendidos para - outro eufemismo - "projectos urbanísticos", com as receitas a ajudarem ao reequilíbrio financeiro da Refer.
Há dias, foi apresentado o projecto de ampliação da Gare do Oriente para a alta velocidade. Santiago Calatrava vai receber mais de seis milhões de euros e promete aproveitar a ocasião para emendar algumas das - note-se o encantador eufemismo - "falhas" do projecto anterior. Abrilhantando ainda mais a ocasião, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, avançou a proposta de encerrar a estação de Santa Apolónia à actividade ferroviária, transformando-a em terminal de cruzeiros. Quanto aos terrenos afectos, deveriam ser vendidos para - outro eufemismo - "projectos urbanísticos", com as receitas a ajudarem ao reequilíbrio financeiro da Refer.
Há várias coisas interessantes neste episódio. Já se conhecia a total incapacidade das inúmeras autoridades e jurisdições sobrepostas, cujas decisões têm impacto na vida dos lisboetas, para chegarem a um nível mínimo de coordenação e planeamento. Mas a situação parece ter chegado a extremos inéditos de diletantismo. No dia seguinte às declarações do presidente da câmara, a CP fez saber que discorda da ideia de António Costa, tendo em conta as consequências graves que ela teria para o congestionamento das linhas e para as operações de manutenção, logística e estacionamento de composições. O que impressiona aqui, claro, não é que duas entidades tenham visões contraditórias sobre o mesmo tema, mas sim que a "ideia" tenha sido avançada sem que, aparentemente, tenha havido a mínima consulta prévia sobre o assunto entre as partes interessadas. De resto, isto parece ser sintoma de uma síndrome ainda mais grave. Quando António Costa era candidato, muito se disse - ou insinuou - sobre as vantagens que decorreriam de ter na câmara um ex-membro do Governo com grande peso político no partido do poder. Mas, como as sucessivos obstáculos colocados às suas "ideias" pelo Tribunal de Contas, pelo Presidente da República, pela oposição camarária e, agora, até pela CP parecem demonstrar, uma das consequências de ser ter eleito António Costa parece ter sido a de colocar na presidência da câmara alguém que ainda não se deu devidamente conta de quão limitados são os seus reais poder, influência e capacidade de realização.
É até possível que o presidente da câmara acredite que é disto, destas "ideias", que se pode, afinal, fazer um bom lugar. No dia em foi eleito, António Costa prometeu, em frente às câmaras de televisão, algumas medidas imediatas, para as quais fixava prazos concretos: para além do simbolismo - que disso ainda não passa - de encerrar o Terreiro do Paço ao trânsito nos domingos, prometeu limpeza das ruas, pintura de passadeiras, ataque ao estacionamento em segunda fila e em cima dos passeios e recuperação dos espaços verdes. Na altura, foi muito criticado por propor medidas aparentemente comezinhas e pouco ambiciosas. Mas a ênfase era correctíssima: uma cidade que, no confronto com as restantes capitais europeias, se caracteriza antes de mais pelo elevado grau de decadência e degradação física do espaço público, precisa em primeiro lugar, e sempre, de manutenção e regulação. Contudo, duzentos e oitenta dias depois, não é preciso deambular muito pela cidade para perceber que, com excepção do simbolismo, estamos muito, muito longe da concretização de qualquer uma dessas "medidas imediatas". E, surpreendentemente, ao contrário da acérrima vigilância que cada vez mais - e bem - se faz da actividade do Governo central, são raríssimas as menções na comunicação social a este fracasso, tendo cabido quase exclusivamente a alguns cidadãos comuns, em vários blogues profusamente ilustrados, a sua diária demonstração. Como a sua presença na Quadratura do Círculo demonstra, os horizontes que António Costa tem para a sua carreira política vão muito para além da "mera" presidência da Câmara de Lisboa. E o risco é que, perante a passividade da comunicação social, a inépcia, falta de visibilidade ou cooptação da oposição camarária, o fascínio de muitos eleitores com as "grandes obras" e a sua habituação ao quotidiano desastroso do que é a vida em Lisboa, o presidente da câmara sinta que se pode dedicar ainda mais a este tipo de "ideias".
A verdade, de resto, é que a proposta de António Costa tem um honroso pedigree na vida da cidade. Inaugurada em 1988, a estação de metro das Laranjeiras tinha sido inicialmente concebida com o fim de servir os utentes do futuro Luna Park. Na ausência de semelhante coisa, a estação serviu para estimular variados "projectos urbanísticos", do T1 ao T6, também disponíveis em duplex. No mesmo dia, abriu a estação do Alto dos Moinhos, inicialmente concebida para servir a "cidade administrativa", onde seriam colocados todos os serviços governamentais hoje situados no Terreiro do Paço. Morta a ideia, vários outros "projectos urbanísticos" ocuparam o seu lugar. Sessenta e oito anos depois da inauguração do Aeroporto da Portela e 50 anos depois da inauguração do Metro de Lisboa, avançam agora as obras de ligação entre um e outro, que têm apenas a ligeira desvantagem de, entretanto, ter sido decidida a construção de um novo aeroporto noutro sítio. Mas há sempre "projectos urbanísticos" que podem suprir uma necessidade tornada subitamente inexistente. E se há novidade nesta proposta de António Costa, é o facto de propor eliminar a razão de ser da extensão da linha de metro para a recém-renovada Estação de Santa Apolónia – com um custo por quilómetro que deverá ter sido um dos mais altos deste meio de transporte em todo o mundo – já depois de a obra estar concluída. Assim, colocada em prática esta ideia, os habitantes da parte ocidental de Lisboa que precisem de fazer um percurso ferroviário de longo curso terão de atravessar toda a cidade até ao seu extremo oriental. Mas sempre que desejarem fazer um cruzeiro, dar um passo de dança à noite, comprar produtos gourmet ou fruir dos vários "projectos urbanísticos" que António Costa terá em mente para a zona, é um saltinho. Em suma, então, a "ideia": pegar em milhares de milhões de euros dos contribuintes que serviram para construir uma obra de alegado interesse público e transformá-los num serviço para uma minoria de cidadãos, fonte de lucro fácil para interesses imobiliários e fonte de receitas para compensar défices ruinosos em empresas públicas. Mas verdade seja dita, António Costa já tinha explicado, na Quadratura do Círculo, que "uma coisa são os valores (de esquerda), outra coisa é a sua aplicação no dia-a-dia." Ora nem mais.
É até possível que o presidente da câmara acredite que é disto, destas "ideias", que se pode, afinal, fazer um bom lugar. No dia em foi eleito, António Costa prometeu, em frente às câmaras de televisão, algumas medidas imediatas, para as quais fixava prazos concretos: para além do simbolismo - que disso ainda não passa - de encerrar o Terreiro do Paço ao trânsito nos domingos, prometeu limpeza das ruas, pintura de passadeiras, ataque ao estacionamento em segunda fila e em cima dos passeios e recuperação dos espaços verdes. Na altura, foi muito criticado por propor medidas aparentemente comezinhas e pouco ambiciosas. Mas a ênfase era correctíssima: uma cidade que, no confronto com as restantes capitais europeias, se caracteriza antes de mais pelo elevado grau de decadência e degradação física do espaço público, precisa em primeiro lugar, e sempre, de manutenção e regulação. Contudo, duzentos e oitenta dias depois, não é preciso deambular muito pela cidade para perceber que, com excepção do simbolismo, estamos muito, muito longe da concretização de qualquer uma dessas "medidas imediatas". E, surpreendentemente, ao contrário da acérrima vigilância que cada vez mais - e bem - se faz da actividade do Governo central, são raríssimas as menções na comunicação social a este fracasso, tendo cabido quase exclusivamente a alguns cidadãos comuns, em vários blogues profusamente ilustrados, a sua diária demonstração. Como a sua presença na Quadratura do Círculo demonstra, os horizontes que António Costa tem para a sua carreira política vão muito para além da "mera" presidência da Câmara de Lisboa. E o risco é que, perante a passividade da comunicação social, a inépcia, falta de visibilidade ou cooptação da oposição camarária, o fascínio de muitos eleitores com as "grandes obras" e a sua habituação ao quotidiano desastroso do que é a vida em Lisboa, o presidente da câmara sinta que se pode dedicar ainda mais a este tipo de "ideias".
A verdade, de resto, é que a proposta de António Costa tem um honroso pedigree na vida da cidade. Inaugurada em 1988, a estação de metro das Laranjeiras tinha sido inicialmente concebida com o fim de servir os utentes do futuro Luna Park. Na ausência de semelhante coisa, a estação serviu para estimular variados "projectos urbanísticos", do T1 ao T6, também disponíveis em duplex. No mesmo dia, abriu a estação do Alto dos Moinhos, inicialmente concebida para servir a "cidade administrativa", onde seriam colocados todos os serviços governamentais hoje situados no Terreiro do Paço. Morta a ideia, vários outros "projectos urbanísticos" ocuparam o seu lugar. Sessenta e oito anos depois da inauguração do Aeroporto da Portela e 50 anos depois da inauguração do Metro de Lisboa, avançam agora as obras de ligação entre um e outro, que têm apenas a ligeira desvantagem de, entretanto, ter sido decidida a construção de um novo aeroporto noutro sítio. Mas há sempre "projectos urbanísticos" que podem suprir uma necessidade tornada subitamente inexistente. E se há novidade nesta proposta de António Costa, é o facto de propor eliminar a razão de ser da extensão da linha de metro para a recém-renovada Estação de Santa Apolónia – com um custo por quilómetro que deverá ter sido um dos mais altos deste meio de transporte em todo o mundo – já depois de a obra estar concluída. Assim, colocada em prática esta ideia, os habitantes da parte ocidental de Lisboa que precisem de fazer um percurso ferroviário de longo curso terão de atravessar toda a cidade até ao seu extremo oriental. Mas sempre que desejarem fazer um cruzeiro, dar um passo de dança à noite, comprar produtos gourmet ou fruir dos vários "projectos urbanísticos" que António Costa terá em mente para a zona, é um saltinho. Em suma, então, a "ideia": pegar em milhares de milhões de euros dos contribuintes que serviram para construir uma obra de alegado interesse público e transformá-los num serviço para uma minoria de cidadãos, fonte de lucro fácil para interesses imobiliários e fonte de receitas para compensar défices ruinosos em empresas públicas. Mas verdade seja dita, António Costa já tinha explicado, na Quadratura do Círculo, que "uma coisa são os valores (de esquerda), outra coisa é a sua aplicação no dia-a-dia." Ora nem mais.
4 comentários:
Centralismo
Publicado por Gabriel Silva em 25 Abril, 2008
Vários episódios ilustram na perfeição como o poder político, gerente do dinheiro sacado aos contribuintes, se comporta de forma não apenas irresponsável, como totalmente impune e sem freio.
Em dezembro de 2007, foi inaugurada com pompa e circunstância a nova estação do Metro de Santa Apolónia. Coisa que custou a todos os contribuintes (e não apenas aos lisboetas), 300 milhões de euros. Eis que apenas passados 4 meses, António Costa veio defender o seguinte: encerramento da estação de comboio, entrega do edifício para terminal de passageiros de cruzeiros, venda dos terrenos para construção urbana e dessa forma, reduzir o défice da Refer. Ou seja, os tais 300 mlhões teriam afinal servido para criar uma rede de metro de apoio a um serviço de luxo e de turismo (os cruzeiros), e valorizar artificialmente terrenos para a construção civil. Note-se que não estou a alegar que há interesses, legítimos ou ilegítimos de construtoras privadas por detrás desta propostas, longe de mim tal coisa….. Para melhor enquadramento desta proposta, dever-se-á ter em conta um outro projecto em curso: o da construção da linha de Metro do apeadeiro do Oriente para o actual aeroporto. Algo que nos custará, a todos nós contribuintes, mais uns 500 milhões de euros. Sabendo-se que é intenção do actual governo que o dito aeroporto venha ser encerrado em 2017 e que o Metro apenas chegará ao aeroporto dentro de alguns anos, já se pode imaginar, não apenas a «utilidade» da coisa, como quem potencialmente irá beneficiar da artificial valorização urbanística por mera decisão política. Veja-se ainda que a opção do Metro foi a de escolher prolongar o ramal mais longinquo, aquele que terá de fazer maior percurso e que implicará maior desperdicio de tempo ao utilizador (quando a poucas centenas de metros passam já duas linhas…). Ainda não acabei ( e já vamos em 800 milhões, 1,5% 0,5% do pib). Para alindar Lisboa, o governo criou mais uma empresa pública. E prepara-se para ser ele, Estado, a gastar dinheiro (de todos os contribuintes), e fazer as obras (mais 100 milhões, pelo menos). Em benefício de Lisboa. E mais as obras no apeadeiro do Oriente (80 milhões) e mais uma nova ponte (300 milhões). Tudo somado, aí uns 1500. Como «A média de derrapagem dos contratos [públicos] é de 100 por cento», ter-se-á uma expectativa de 3.000 milhões de euros torrados na cidade capital. Pago por todos e sem utilidade visível. Somos um país rico.
http://blasfemias.net/2008/04/25/centralismo/
A extensão do metro ao aeroporto continua a fazer sentido, porque poderá ter uma estação no Parque das Nações e outra em Moscavide. O aeroporto há-de funcionar mais uns anos e quando deixar de funcionar será urbanizado, espero
O problema do metro servir urbanizações novas não seria problema se se seguisse uma prática corrente noutros países que é cobrar uma taxa aos donos dos terrenos em volta das estações, usando assim as mais-valias geradas pelo metro para financiar a obra.
De resto, parece-me que estes investimentos não são à partida improdutivos, têm é que ser bem geridos. Não os fazer pode sair mais caro.
Portugal é um país governado por loucos! Estamos bem arranjados com estes políticos corruptos!
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