Há muitos, muitos anos, quando a cidade fenecia por volta das avenidas novas, quando a avenida da República era uma sucessão espaçada de moradias endinheiradas, estava enraizado o hábito na Lisboa popular e burguesa de reservar os Domingos para, em alegres grupos ou pacatas famílias, excursionar até aos retiros e hortas da periferia. Na Estrada de Sacavém, um longo percurso que se iniciava por volta de Arroios, estava concentrada a maioria dos retiros mais afamados, dos quais o “Perna de Pau” gozava de maior renome. Cabo Ruivo, Estrada de Benfica, Campo Grande, eram outros dos locais de romaria que a memória popular guardou.
Fosse por ser local de quintas afidalgadas, fosse por ser local de passagem para outros poisos, do Lumiar não ficaram retiros dignos de perdurar nos registos. Perto, na sua periferia, sobreviveram até há relativamente pouco tempo, dois: o Quebra-Bilhas no Campo Grande e a Quinta de S. Vicente em Telheiras. Infelizmente abatidos ao serviço – como poderiam sobreviver nestes tempo de normalização à força?- resta ainda o local, à vista de passantes e de curiosos do passado.
Voltando ao presente. Não encontrando no passado tradições para cumprir, aos lumiarenses resta a invenção de novos locais de peregrinação gastronómica na freguesia . Um deles será certamente o “Retiro da Matilde”, em pleno coração do Lumiar, na sua zona histórica.
Os países de língua inglesa têm uma expressão que definiria muito bem o tipo de culinária que se pratica neste restaurante não fossem as presentes preocupações nacionais com a hipertensão impedirem a sua utilização: “hearty food”. Não é decididamente uma culinária que pratique uma relação, digamos... saudável com o sistema vascular de cada um o que por aqui podemos encontrar. Mas é com certeza uma culinária feita com o coração e que deixa o coração mais empedernido satisfeito com as alegrias que proporciona.
No “Retiro da Matilde” pratica-se uma cozinha não de autor mas de amor. Amor pelos pratos que de cada região atracaram à capital há muito, amor pelos produtos que, pelo país os séculos de mão sapientes foram aperfeiçoando no calor da lareira. Amor pelos clientes que aportam, descendentes indirectos dos excursionistas dominicais de antanho.
ENTRADAS
Morcela da Guarda com frutas; Alheira de Caça com Verdura; Queijo de Castelo Branco; Salpicão de Barrancos
Das entradas, destaque para os enchidos. Das nossas incursões pudemos comprovar a excelência da morcela da Guarda e da alheira de caça: a morcela com o excesso de gordura que lhe é natural devidamente cortado pela acidez dos gomos de laranja, a alheira acompanhada por uns grelos cozidos no ponto e salteados em azeite e alho. Já o salpicão nos pareceu menos digno de nota, um tom inferior face à pujança dos seus acompanhantes.
Ficou por provar o queijo de Castelo Branco, igualmente anunciado na ementa.
PEIXES
Camarão na Grelha; Amêijoas à Bulhão Pato; Choquinhos à Algarvia; Dourada Grelhada; Feijoada de Camarão
Concessões à diversidade de gostos dos clientes, ao camarão e à dourada dissemos nada, reservando-nos para a feijoada de camarão. Bem apurada, com fartura de crustáceos valeu a escolha.
Já dos choquinhos não gostámos do excesso de sal, a acentuar em exagero a fortaleza do refogado e da presença do alho.
CARNES
Pernil de Porco no Forno; Perna de Veado no Forno; Pato no Forno com Laranja; Presa de Porco Preto na Grelha; Picanha Fatiada na Grelha; Carne de Porco Alentejana; Feijoada de Lebre; Coelho com Amêijoas; Moelas Estufadas; Bife da Vazia Frito ou Grelhado
Há nos pratos de carne disponíveis um visível cuidado em combinar as concessões ao gosto pouco exigente dominante actual (o pernil de porco, a picanha, o bife da vazia) com uma culinária menos vista mas mais regionalista. Boas surpresas poderão ser, para quem queira arriscar sair do habitual a feijoada de lebre ou o coelho com amêijoas. A presa de porco, provada, pareceu-nos um bocadinho seca, acusando um ligeiro excesso de tempo na grelha, eventualmente acidental; a utilização de fruta como parte do acompanhamento, um bocadinho despropositada.
SOBREMESAS
Mousse de Chocolate; Baba de Camelo; Doce de Maçã com Doce de Ovos
Enfim, não se pode ter tudo. E no capítulo das sobremesas, a nossa animação decresceu perante tão rala oferta. O doce de maçã é um atentado aos menos gulosos. Puré de maçã envolto em claras batidas em castelo e levado ao forno, revestido com um doce de ovos transbordante é a proposta.
CARTA DE VINHOS
A carta de vinhos é, ao contrário das vitualhas, pouco variada e muito menos apelativa. Tivesse o amigo Almeida tempo, recomendar-lhe-íamos umas expedições aos locais de origem dos seus pratos em busca de bons casamentos vinícolas para disponibilizar aos comensais.
PRATOS DO DIA
Terça – Pato no forno com laranja; Quarta – Feijoada à Brasileira; Quinta – Arroz de Polvo com Camarão; Sexta – Pernil de Porco no Forno; Sábado – Choquinhos Fritos à Algarvia; Domingo – Cabrito Assado no Forno
SERVIÇO
Extremamente prestável e atento, o dono da casa, Sr. Almeida, oficia sozinho e de tudo dá conta.
COMO IR
O restaurante fica na Rua do Lumiar mas o melhor é deixar o carro no princípio da vizinha e paralela Alexandre Ferreira e depois a ela aceder a pé pelo pequeno pátio situado no saguão do primeiro prédio do lado esquerdo. Para os menos avisados, a rua Alexandre Ferreira começa no prolongamento da Alameda das Linhas de Torres, junto às bombas da Repsol.
APRECIAÇÃO
Localização e acessos - 4/6; Espaço interior, conforto – 3/6; Serviço - 5/6; Ementa – 5/6; Culinária – 5/6; Carta de Vinhos – 2/6. Valor final – 4/6. Apreciação final: um espaço definitivamente a frequentar quando em busca de uma cozinha sólida, regional, apurada.
RESTAURANTE RETIRO DA MATILDE
Rua do Lumiar, 18-20, Lumiar
11 comentários:
Já estou com água na boca! Mas que excelente ideia do Viver Magazine - restaurantes!
Adoro este restaurante! Concordo que abusa um bocadinho no sal e mesmo um exemplo de saúde como eu se ressente no dia seguinte a tão farta ementa. Mas é uma cozinha feita com o coração, sim, deliciosa. O vinho da casa, a jarro, dispensa por completo a necessidade de mais escolha.
Já estou com vontade de lá voltar!
Pois, e eu também. A minha médica é que não...
A tua médica também lá vai? É um restaurante muito in!
Quem é que mete aqui o mapa de localização desse retiro?
A propósito de vinhos, quem é que me explica o que é o vinho da talha, aquele que não passa pelas garrafas?
http://www.viamichelin.com/viamichelin/int/dyn/controller/ItiWGPerformPage?reinit=1&strStartCityCountry=EUR&strStartAddress=rua+alexandre+ferreira&strStartMerged=&strDestCityCountry=EUR&strDestAddress=r4ua+do+lumiar&strDestMerged=&image2.x=51&image2.y=12#startLocid=34MTE1NWFkd2QwMDUxMG9uejEwNTNmdW9qY016Z3VOemMzTkRnPWNMVGt1TVRZek1EWT1jTXpndU56YzJNRFU9Y0xUa3VNVFl5TlRnPWNNemd1TnpjMk1EVT1jTFRrdU1UWXlOVGc9MG1SdWEgQWxleGFuZHJlIEZlcnJlaXJh&destLocid=34MTE1NWFrdGgwMDUxMG9uejEwNTNnbzB5Y016Z3VOemMyTVRVPWNMVGt1TVRZek5URT1jTXpndU56YzFPUT09Y0xUa3VNVFl6TWprPWNNemd1TnpjMk1UVT1jTFRrdU1UWXpOVEU9MGRSdWEgZG8gTHVtaWFy&step1Locid=&step2Locid=&vh=CAR&distance=km&strVehicle=0&intItineraryType=1&devise=1.0|EUR&isAvoidFrontiers=false&isFavoriseAutoroute=false&isAvoidPeage=false&isAvoidVignette=false&isAvoidLNR=false&carTypeHidden=Citadine&caravaneHidden=false&typeCarbHidden=essence&autoConso=6.8&villeConso=6&routeConso=5.6&carbCost=1.3&dtmDeparture=10/06/2007
O vinho da talha é o que era comprado a granel, em barris e que, hoje em dia, é vendido em garrafões. É, normalmente, de baixa qualidade - ainda que haja excepções. Espera-se ainda que não seja "baptizado" de modo a render mais. Acredito que, mais ano menos ano desaparecerá, proibido pela nossa UE em nome das normas de higiene ou de defesa do consumidor (como aconteceu com os galheteiros)
Voz do deserto:
Tradição com Futuro
O vinho da Talha em Vila de Frades
www.vitifrades.net
Eu discordo da tua apreciação em relação a alguns dos pratos.
O salpicão não me pareceu nada inferior. E eu chamer-lhe-ia paio, não salpicão, como está na ementa. Mas isto devem ser regionalismos pq a minha costela Alentejana tb chama linguiça a coisas que por cá se chamam chouriço. Mas, bom, achei o salpicão mesmo muito bom. Não muito seco e com aquela gordura que derrete na boca qd as fatias são fininhas (felizmente não tenho os genes do colesterol; a gordura vai toda para barriga e ancas mas deixa-me as veias limpinhas), ao invés da gordura "elástica" e fibrosa que se encontra muitas vezes.
Já a alheira com agrelos, estava boa, sim. Os grelos no ponto, como dizes. Mas a minha vivência transmontana prefere a alheira grelhada e não frita como se come por cá em Lisboa. Grelha-se com pele (e come-se a pele tb).
Já o resto concordo ctgo. Mas eu gosto da comida "apetitosa".
Qual será a próxima comemoração, 1 ano e 1 mês do "Viver"?
É que fotografia das ameijoas deixou com agua na boca!
Tradições do deserto...
"(...)ou parados á porta das vendas, onde o vinho das talhas de barro é medido em canecas sobre alcadefes, e d'onde saem plangentes cantares, acompanhados pela adufa árabe.(...)"
in Évora quotidiana (XIX)
"(...)Em talhas se fazia e guardava o vinho na uilla romana de S. Cucufate, Vidigueira (...)"
in O VINHO NA LUSITÂNIA: reflexões em torno de um problema arqueológico
Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol.1 nº1, 1998
Carlos Fabião
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