sexta-feira, 12 de maio de 2006

Viver na cidade prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam. Viver na cidade mata.



A trágica morte de uma criança, por atropelamento, na Av. de Ceuta, traz-nos de novo à discussão algumas opções tomadas para as cidades.

Com o aumento do parque automóvel, resultado do crescimento do poder económico dos portugueses nos últimos 30 anos, as infraestruturas rodoviárias, entretanto insuficientes e obsoletas, tiveram de ser reajustadas. Foram construídas auto-estradas que aproximaram o mundo rural das grandes cidades, outras foram alargadas, reduzindo drasticamente os tempos de viagem. Também nas cidades houve opções tomadas. Ruas que viram duplicar o número de faixas, ou mesmo praças que se transformaram em entroncamento. Ganhou-se mobilidade, é certo. Mas perdeu-se qualidade de vida, mesmo assim. Poluição atmosférica, ruído constante nas zonas de habitação, poluição visual com os carros a ocuparem a paisagem urbana, stallonização dos automobilistas, cada vez mais impacientes e agressivos. A cidade ficou menos convidativa para andar a pé.

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A opção podia e devia ter sido o investimento numa rede de transportes colectivos eficaz e abrangente. Podia ter-se sido fiel à cidade, entendendo que alguns princípios são mais intemporais, válidos e importantes para a longevidade que os anseios comodistas dos automobilistas. Mas não, a cidade foi morrendo, progressivamente tomada por este cancro que é o tráfego automóvel.

Na Av. de Ceuta o caso é um pouco diferente, mesmo assim. A estrada já existia, era um dos acessos principais à ponte 25 de Abril, e foi sendo alargada na mesmo lógica das outras ruas, acessos e auto-estradas. João Soares, então presidente da CML, resolveu realojar os moradores do Casal Ventoso em prédios construídos para o efeito nos dois lados da avenida. Perdeu-se também a oportunidade, segundo especialistas, de transformar a Av. de Ceuta no eixo terciário por excelência da cidade de Lisboa, retirando do centro muito do tráfego automóvel. Mas João Soares não o quis assim, preferindo ladear com prédios de habitação uma auto-estrada que chega a ter quatro faixas de rodagem para cada lado.



E entra-se assim em paradoxos. Impõe-se os 50 Km/h como limite de velocidade dentro das cidades, mas constroi-se auto-estradas com três e quatro faixas para cada lado que convidam à velocidade. Coloca-se semáforos que permitam o atravessamento de peões mas rouba-se nos segundos dados para essa travessia, como foi no caso da Av. de Ceuta. Para compensar a não opção do passado nos transportes colectivos cria-se, onde se pode, faixas BUS com abertura do semáforo antecipada aos restantes automóveis. No caso da Av. de Ceuta, uma triste coincidência revelou-se fatal.

Mas não interessa se a criança passou a rua com o sinal vermelho, ou a cair para o vermelho, se foi lenta a atravessar, se resolveu arriscar, se o taxista vinha lançado de trás. O que interessa é que todas estas situações podem acontecer e cabe a quem planeia as cidades evitar as condições em que o erro humano pode ser fatal. O que interessa é que construir cidades assim é entregar às pessoas presentes envenenados, é aumentar o risco da perda de vidas humanas e nada devia justificar isso.

Mas infelizmente há sempre quem arranje argumentos para justificar o injustificável, seja fazer passar auto-estradas dentro de bairros ou colocar bairros junto a auto-estradas.

10 comentários:

Ana Louro disse...

Ainda estou chocada e irritada com tudo isto. E apesar de ainda querer acreditar, pela positiva, nas boas vontades da presidência e vereadores da CML, porque quando com eles me confronto é essa a imagem que continuam a passar, o que é facto é que nada se altera com o passar do tempo e já não acredito. Provém-no, mas rapidamente. Para além da falta de passadeiras em muitos sítios onde elas já deviam existir falar de mais ou menos segundos para o atravessamento é caricato. Sabemos que é frequente o sinal ficar verde para os peões e termos que descontar segundos parados à espera antes de atravessarmos a passadeira, para termos a certeza que os veículos travem e param ou para dar tempo a que o último condutor "esparrinho" ainda passe já com o sinal vermelho para os veículos sem nos atropelar. E depois ficarmos a saber (aquilo que já se sabia) que as concentrações de partículas (além de outros poluentes) ultrapassam em vários locais da cidade (Campo Grande e Av. da liberdade, por exemplo) os valores admissíveis e não se verem medidas de resposta da autarquia a esta situação. A vereadora da Mobilidade disse «Eu não posso é engarrafar a cidade. Tenho de criar condições para os peões mas com calma e serenidade...», mas a cidade já está engarrafada. Se os automóveis nem sequer entrarem a cidade não engarrafa nem fica tão doente e infecciosa. Como é que podemos contribuir para a mudança desta visão e do estado de coisas? Vou enviar mais um email para o endereço do munícipe, mas isso não chega... São tantas as soluções possíveis apontadas pelos técnicos, mas nenhuma se testa sequer. Falta a coragem política, pois falta e também a responsabilização dos que têm o dever de decidir pelo bem comum. De outra forma creio que tudo seria diferente.

Ana Louro disse...

Queria escrever "espertinho"

d. disse...

Tens razão Tiago, mas para mim é um dos vértices do Triângulo. O outro é o Automobilista (stallonizado ou não) e o único onde temos algum peso é na Criança (ou peão).

Quanto ao automobilista, penso que todos já concluímos que ou se tem bom senso e inteligência para pensar que a qualquer momento pode acontecer um acidente (muitas vezes motivados por terceiros) e como tal temos de estar atentos à nossa condução, à condução dos outros, às iminentes passagens de estarda de peões, animais ou à existência de buracos e/ou outros obstáculos ou então estamos ainda mais sujeitos a que nos aconteça algo directa ou indirectamente.
Na minha opinião, as aulas de código e condução são secundárias a partir do momento em que não abordam estas questões de inteligência social.

Quanto à criança, acabou-se o velho ensinamento de que atravessar é nas passadeiras, com sinal verde, depois olhar para a esquerda, direita e novamente esquerda. Isso não resulta. O único ensinamento que fica é que mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto.

Falo por mim. Eu não arrisco. Pego na mão das minhas filhas até que elas percebam que a distracção pode ser nossa ou de outros.Até que tenham a percepção de que um acidente acontece rapidamente, de forma estúpida, quando nada leva a crer e tanto pode ser na Av. de Ceuta como no Jardim da Estrela, às 7h ou às 17h. Não largo a mão. Nem que o faça até terem 18 anos. Ou mais!!!!
Autonomia sim, mas não para que outros a tirem.

Pedro Veiga disse...

A meu ver isto só vai lá com medidas a sério: fechar ruas e avenidas ao trânsito automóvel, alargar passeios e preencher o resto do espaço com linhas de eléctricos modernos adequados ao transporte de carrinhos, cadeiras de rodas, etc. Isto já existe em muitas cidades por essa Europa fora. Nos anos 80, no tempo da gestão da CML pelo Eng. Abecassis começou-se a falar na introdução de eléctricos modernos. Tal operação ficou-se pela carreira 15 que faz parte do seu trajecto em convivio com os autmóveis. Mais nada se fez. Apenas foram desaparecendo as linhas antigas, sendo substituídas pelos poluentes e ineficientes autocarros que se arrastam no mar de automóveis particulares.
O metro, para além de inacessível a uma faixa considerável da população que não consegue descer escadas, tem hoje uma extensão ridícula, e ao ritmo que está a crescer apenas deverá cubrir todo o concelho de Lisboa lá para 2100, o que é manifestamente insuficiente.
Ainda ontem nos telejornais falou-se sobre a poluição atmosférica das cidades, a propósito de um ciclo de debates na Gulbenkian. Que fazer? Cortar o trânsito, obrigar o automóvel a ceder a prioridade ao transporte público não poluente e ao peão! É a única solução.

Pedro Cruz Gomes disse...

O aumento do tráfego automóvel decorre naturalmente do crescimento da dimensão das cidades e do percurso necessário para as deslocações casa-trabalho-casa. Não adianta conjecturar sobre soluções milagrosas ou radicalmente destrutivas: enquanto houver subúrbios habitacionais e centros terciários (e a esmagadora maioria da população lisboeta empregada tem emprego no sector terciário) haverá fluxos bidiários. E, ou este país se transforma numa Coreia do Norte ou qualquer outra autocracia do género, ou a aspiração natural das populações a um transporte próprio correrá sempre contrária e em maioria aos esforços socializantes de transporte público e colectivo.
Como resolver o problema?
Diminuindo as urbes? Voltando a apostar no preenchimento das zonas mais antigas e mais despovoadas? Decretando o racionamento da gasolina ou a obrigatoriedade de passes de entrada na capital?
Venha o diabo e escolha.
Talvez um sismo nos poupe ao embaraço (e ao imobilismo) da escolha.

Tiago disse...

Pedro, eu percebo os teus receios quanto ao uma incursão totalitária e ditatorial por parte do governo na livre opção de usar o dinheiro.

Mas o ponto não é esse. O que questiono não é a falta de lei punitivas ou impeditivas da aquisição e/ou utilização do automóvel, mas pelo contrário, o incentivo utilização ao construir-se tanta rua-auto-estrada e descurando-se nos transportes colectivos. E questiono não por achar os transporte colectivos mais cómodos do que o automóvel particular, mas porque as consequências que este tráfego traz à cidade e à saude das pessoas é realmente nefasto.

Chegamos a um ponto em que há ruas, como a Av. de Ceuta ou a Av. das Descobertas, onde se pode perder vida ao atravessar uma passadeira.

Seja como for, esse liberalismo que aparentemente defendes é o mesmo que faz qualquer cidadão norte-americano poder comprar uma arma? Estarei a ser demagógico? Não deveria servir o Estado para regular as leis que melhor sirvam a população?

Estamos realmente melhor assim, com a cidade vendida aos automóveis? Só uma catástrofe natural ou um ditador são alternativas a isto?

Pedro Cruz Gomes disse...

Transleste o que escrevi Tiago. O que eu (talvez subtilmente demais) queria realçar era a inevitabilidade da desumanização da cidade (e a proliferação de transportes, públicos ou privados)face ao crescimento desmesurado da opção suburbana para localização da habitação da grande maioria dos trabalhadores de Lisboa. Para mim, teria feito todo o sentido a preferência pela reabilitação (ou renovação se os custos fossem incomportáveis) dos centros históricos com o não-zonamento dos bairros novos da cidade que o crescimento populacional obrigatoriamente necessitaria, mantendo assim as distâncias entre local de trabalho e local de habitação em valores realizáveis a pé ou de transportes urbanos de curta duração. Mas fazer isso seria lutar contra as teorias da época, contra a ignorância ou tibieza da maior parte dos decisores e, principalmente contra a conjugada pressão de financiamento municipal e de enriquecimento rápido por parte dos promotores profissionais ou de aviário.
Acresce ainda que somos demasiadamente deslumbrados com o brilho de falso ouro que o "progresso" dos outros aparenta para resistir aos apelos fáceis do momento.
A pergunta é assim: procurando ser proactivos em vez do deprimente reactivismo que caracteriza a maior parte dos pretensos "defensores da cidade" que por aí gritam "vergonha" face a cada ameaça de camartelo que pende próxima sobre uma ruína abandonada há mais de trinta anos, que soluções podemos apontar ou desenhar para o problema que apontas?
Eu referi algumas possíveis no meu comentário anterior, mas não sendo propriamente optimista em relação aos meus conterrâneos e ao meu país, continuo a acreditar que só uma ruptura involuntária resolverá a questão. E, dessas, o sismo...

Tiago disse...

Ao dizeres "venha o diabo e escolha" de todas as opções que apresentaste como possíveis, depreendi que considerarias melhor deixar tudo como está do que decidir, e assim esperar então pelo sismo que nos obrigasse a refazer a cidade.

Se tem havido decisões é apenas no alargamento das vias rodoviárias que se tornaram insuficientes deste a reformulação anterior. E esta opção não se tem revelado eficaz ou benéfica.

Não faço ideia qual será a melhor solução, a mais justa ou mesmo quais as possíveis. Tendo em conta o dinheiro que um automobilista gasta em gasolina hoje em dia, custa-me a crer que as decisões que fomentem o uso do transporte colectivo e dissuadam a uso do automóvel particular sejam economicamente mais inviáveis do que deixar tudo como está.

E as hipóteses talvez fossem a criação de mais faixas BUS onde fosse possível criar, restringir a transportes colectivos algumas ruas, investir fortemente numa rede de transportes colectivos entre centro e subúrbio.

Isto não querendo mexer em qualquer ordem económica obrigando à deslocalização das empresas. Mas acho que vale a pena falar apenas do tráfego, da poluição que representa, das alternativas existentes, das causas dessas alternativas não serem viáveis (se por insuficiente número ou por saturação dos acessos).


Mas é como dizes. Não acreditando ou tendo esperança na viabilidade deste país, resta-nos assistir à continuação das más opções e esperar pelo sismo.

Pedro Cruz Gomes disse...

Vá, vamos lá a ser proactivos: o que é "investir fortemente numa rede de transportes colectivos"? É aplicar o dinheiro em quê? Em mais vias férreas? Em mais autocarros? Em parques de estacionamento gigantescos à entrada da cidade? Em portagens em cada rua de acesso a Lisboa? Em quê? E quem paga o investimento? Se o preço de usufruto traduzir esse investimento confirmar-se-ão as perspectivas optimistas de que o uso de transporte particular sairá mais dispendioso? E se fôr investimento público - que outros investimentos se deixarão de fazer (sem demagogias que para isso temos a AR)?
Não vale dizer que somos leigos no assunto, Tiago. Porque se somos leigos para propor também o somos a apontar...
Bora lá a usar as meninges para coligir informação, aprender e reflectir. Porque de palavras já temos o Eça farto.
I'm game.

Tiago disse...

Investir no alargamento das ruas, das avenidas, na construção de túneis, de parques de estacionamento subterrâneos dentro da cidade, é convidar os automóveis a entrar na cidade. Aumenta-se a capacidade de fluxo, e o fluxo aumenta, com todas as consequências nefastas, até saturar as vias novamente.

Talvez se se tivesse canalizado esse dinheiro para o aumento da frota de autocarros, comboios e metro, passassemos a ter uma rede de TP melhor e mais eficaz e menos automóveis na cidade.

Porém os engarrafamentos persistiriam. E aí a solução seria dar prioridade aos transportes públicos com faixas BUS. Se se criarem as condições de circulação de TP na cidade, se houver uma frequência de TP que não obrigue as pessoas a ir ensardinhadas de pé durante uma hora, talvez não seja preciso medidas mais graves e difíceis como aumentar os impostos ou fazer portagens nas 1001 entradas da cidade. Ou seja, desde que se criem as tais condições de fluidez da circulação dos TP com faixas exclusivamente BUS, a saturação das outras ruas seria o principal elemento dissuasor da utilização do automóvel particular.

O problema actual é que os TP ficam presos no trânsito, cheios até ao limite, e assim qualquer pessoa que possa prefere viajar comodamente no seu automóvel. Paga-se mais, claro, mas é evidentemente mais agradável.

Era preciso saber o número de pessoas envolvidas nos fluxos bidiários, a quantidade que usa carro próprio, a quantidade de TP necessários para garantir comodidade e celeridade nas deslocações.

Não sei esses números nem quanto custa isto, é certo. Mas só estou a propor uma transferência de fundos de uma política que promove a utilização do automóvel particular para o reforço dos TP.

Também não sei se os TP dão prejuízo por defeito. Não sei se sai mais caro ao Estado pagar o prejuízo dos TP do que todos os anos fazer mais obras na rede viária. Mas diz-me tu, então, Pedro. Explica-me, se coligiste a informação, se aprendeste e reflectiste.