Brad Mehldau no CCB. Foi um concerto fabuloso, por um trio de jazz composto por piano, contrabaixo e bateria.
Quando conheci o Rodrigo, há uns meses, confidenciei-lhe estar arrependido de ter dado um início exclusivista ao blog. Tinha acabado de conhecer o Brad Mehldau através de um CD emprestado. Ouvia-o compulsivamente, várias vezes por dia. Na altura não encontrei forma de conciliar o meu entusiasmo e vontade de mostrar a música que me perseguia com as fotografias das ruas e jardins em construção. Parecia-me deslocado num blog que se propunha a debater o desenvolvimento e vivência de uma zona nova de Lisboa fazer um post de carácter pessoal a falar de um disco que me estava a obcecar.
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Mas hoje penso de maneira diferente. Uma cidade faz-se de pessoas, com prazeres, motivações, paixões. E nesta teia de blogues que falam de cidades, no Céu, no Planeta, n'a barriga, em todos os outros que lutam por uma vida mais saudável, por um maior respeito pelas pessoas, hierarquizando a importância que tem as várias opções tomadas e por tomar pelas autarquias e governos, apercebi-me que uma cidade precisa de inteligência, de açúcar e afecto.
[aqui jaz um pedaço de música]
(Brad Mehldau - Places, Los Angeles)
As pessoas precisam de tempo para viver, para pensar nas coisas, para encontrar razões e motivações para as suas vidas. E quando falamos da cristalização dos bairros antigos de Lisboa, do comércio instalado, na vida de rua possível de ter, falamos de harmonia entre as casas das pessoas, dos empregos, e de toda a estrutura comercial e de equipamentos que permite a subsistência autónoma do bairro. Os males acontecem quando temos grandes urbanizações onde pouco existe para além de casa de habitação, e grandes bairros onde pouco existe para além de escritórios e comércio.
A vida de rua feita dentro do automóvel, desde a saída da garagem do prédio de habitação à entrada na garagem do escritório ao parque de estacionamento do hipermercado está, aos poucos, a matar a cidade. Bairros inteiros vazios à noite, como a Baixa Pombalina, bairros inteiros vazios de dia, como alguns subúrbios lisboetas, indiciam uma perda de tempo nas deslocações entre a casa e o emprego, desnecessária se a cidade fosse construída (ou melhor, mantida) de forma planeada, incentivando a fusão entre habitação, emprego e comércio. Esta perda de tempo e qualidade de vida está a deixar as pessoas dormentes, indiferentes a tudo o que as rodeia, olhando o próximo como um estranho, desinteressando, ignorando e desresponsabilizando-se das opções governamentais tomadas. A falta de tempo não nos permite ler, manter informados, pensar, discutir, questionar o rumo das coisas. Ter tempo, hoje em dia, começa a ser considerado um luxo ou sinal de preguiça e ociosidade.
Numa cidade pequena, como a Guarda, por exemplo, com 40000 habitantes, é possível fazer um percurso casa-emprego em cerca de 10 minutos, bem menos que a hora e meia que em hora de ponta leva do Cacém ao centro de Lisboa. Ao fim de um dia de trabalho sobra tempo para outras coisas, para viver. E se vêm com o chavão de que fora das grandes metrópoles pouca oferta de cultura e entretenimento existe, atentem no Teatro Municipal da Guarda: têm um site bem estruturado, um blog com informação mais recente, um programa em papel com uma apresentação fantástica, e, mais importante que tudo isso, uma programação variada e rica.
Não faço ideia do orçamento desta programação, nem das audiências médias de cada espectáculo. É provável que seja bastante dispendioso, é provável que sem uma boa divulgação e uma ligação inteligente com as escolas todo este esforço financeiro seja em vão, mas não deixo de me espantar com o contraste de dinamismo que vejo cada vez mais nas cidades do interior e em Lisboa.
Nesta discussão recente sobre a Alta de Lisboa ficou a ideia de que ou se está do lado do projecto ou se está contra. Essa discórdia fundamentalista passa-me ao lado. Ou se discute o colapso económico, o colapso da construção civil, a corrupção instalada nas Câmaras Municipais que vendem ao desbarato os seus terrenos oportunamente licenciados para habitação, aumentando o surrealismo de algumas zonas da cidade, num adiar cego da falência, ou então jamais se chega a conclusões acerca seja do que for.
Há portanto algumas dúvidas urgentes: Quando houver maior oferta do que procura, que valores terão as casas onde famílias hipotecaram grande parte do seu orçamento? Qual deverá ser a aposta dos governos centrais e locais? A reabilitação, reconstrução ou abandono das malhas antigas? A construção de novas zonas planeadas de raiz, tipo Alta de Lisboa, ou o crescimento canceroso da cidade, sem critério que não seja lucro rápido? O que vai acontecer aos bairros históricos de Lisboa se se continuar a adiar a sua reconstrução ou restauro estrutural? Até quando ou quanto será tolerável a incompetência e corrupção dos vários governos nestas questões?
Parece-me que a Alta de Lisboa como projecto é exemplar, mas o cenário que se estende à sua volta torna preocupante o seu futuro. As questões trazidas à discussão recentemente, mais do que porem em causa o projecto da Alta de Lisboa, põem em causa a política de urbanismo e de rigor de qualidade em Portugal. Valerá a pena continuar a licenciar a construção de prédios de habitação se começa a haver mais oferta que procura? Valerá a pena continuar a permitir o aumento dessa oferta sem critérios de qualidade urbana quando simultaneamente se é parceiro num projecto gigantesco como a Alta de Lisboa que pode ficar condenado ao insucesso por questões extrínsecas ao seu planeamento? Vale a pena continuar a fomentar a desumanidade de ser perder duas horas diárias em deslocações casa-emprego em detrimento da família e lazer?
Seria bom também que a própria SGAL, UPAL, CML tivessem uma participação séria e honesta nesta discussão. Que todos abríssemos os olhos, acordássemos deste torpor optimista porque não gostamos de andar deprimidos.
Finalizando este longo post: quando será possível assistir-se a uma programação cultural no Centro Cultural da Alta de Lisboa que traga nomes como Brad Mehldau, Grigory Sokolov ou a Orquestra Filarmónica de Berlim? Para isso fazer sentido é necessário que a Alta de Lisboa tenha crescido, cristalizado na Lisboa e ganho uma vida que neste momento não tem.
[aqui jaz um pedaço de música]
(Brad Mehldau - Elegiac Cycle, Bard)
6 comentários:
Muito bem, Tiago. E se não houver mais licenciamentos onde irão as Câmaras buscar os seus dividendos? A resposta mais imediata - será a única? - parece ser: aos proprietários. Estaremos dispostos a aceitar a onerosidade de uma coisa que nos foi imposta sem alternativa em nome de um bem-estar público?
Tiago, concordo mesmo contigo quando dizes que uma cidade se faz de motivações e paixões, e se a música é para ti uma delas acho que faz todo o sentido que a incluas no blog. Falar de música é sempre uma lufada de ar fresco e portanto espero que mantenhas esta "linha editorial". A Alta de Lisboa associada a música torna-se muito mais interessante. :-)
Amanhã comento a essência deste post, que vale a pena!.
Mas agora q estou cheia de pressa para sair e demorar apenas 20 min até casa, queria só dizer que às vezes é nos tempos de trajecto no trânsito e transportes públicos que realmente encontramos o *nosso* tempo. Não tenho saudades do cansaço e do tempo não passado em casa e longe da família, mas tenho saudades das 2 horas de transportes públicos diárias, quando vivia na margem sul, e em que lia, lia, lia. Agora não leio tanto.
E quantas conversas não se meteram quando percebemos que a pessoa ao lado vai distraidamente a ler a página do nosso livro e esperamos que acabe para mudar de página? Trocavam-se sorrisos e criavam-se cumplicidades.
E quando me dava a preguiça, gostava de olhar para as capas dos livros dos outros, ou dos CDs. Tinha um amigo que forrava sempre os livros q andava a ler com papel pardo, para proteger as capas das andanças. Sempre achei um hábito muito anti-social :-)
Joana: acho que a diferença substancial é que aproveitavas bem o tempo passado nos transportes públicos. Ou algo me está a escapar e o planeamento urbanístico dos subúrbios tem como principal objectivo o aumento da leitura dos portugueses? A tua ideia é gira, e é verdade que se aprende muito nos transportes públicos, se vê muita coisa, se percebe a população, mas isso não é, obviamente, um argumento a favor das cidade-dormitório.
Inês: obrigado pela visita e pelo comentário. Não cheguei a falar de música, esse passo ainda me vai custar dar. A vocação do blog não mudou, continua a ser sobre a cidade, apesar destes mimos que também fazem falta.
Pedro: Será a única?
Tiago: Eu não fiz a apologia das cidades-dormitório! Se me perguntares, prefiro morar mais perto do trabalho e prefiro, principalmente, que as zonas de trabalho e de habitação se misturem. Além de não gostar de zonas dormitório, tb não gosto do conceito oposto de polos tecnológicos como o Tagus Park, por exemplo. Apenas quis lembrar que os tempos passados nos transportes podem ter um lado bom. E, apenas no aspecto que referi, actualmente sinto falta das oportunidades que esse tempo de viagem me proporcionavam.
Tantas questões! Talvez as minhas respostas dessem um post, mas aqui vai. Lisboa envelheceu e ultimamente tem crescido em área edificada e de forma insustentável o que contribuiu para a desertificação da zona antiga. A falta de uma política de solos devidamente aplicada e o vício das autarquias em emitir licenças sem qualquer critério, atrás do financiamento fácil, levou as pessoas para as periferias originando necessidades de mobilidade que não existiam. Não é possível alargar mais as áreas urbanas com todos os impactes ambientais, sociais e económicos que daí decorrem. Pelo contrário é necessário e urgente recuperar os centros degradados. Mas esta situação interessou e continua a interessar ao lobby dos combustíveis e do automóvel com o aval do Estado. A estratégia de solos e a estratégia de ambiente urbano estiveram no final de 2005 em discussão pública, sem conhecimento da maioria das pessoas, por falta de divulgação (com a consequente pequena participação). O plano tecnológico e a estratégia europeia de desenvolvimento sustentável não referem o solo nem qualquer estratégia neste domínio, de forma a criarem emprego e riqueza, fixarem pessoas e não se tornarem numa oportunidade perdida.
E se nas novas cidades/bairros se mantiver a dependência do automóvel não sei se Lisboa engordará mas os seus habitantes certamente. Não creio que depois do Parque das Nações e da Alta de Lisboa se planeiem novas cidades dentro da cidade. Para quê e para quem? Mas sendo a Alta de Lisboa já não apenas projecto mas uma realidade com pessoas, prefiro ficar do lado de dentro do que de fora (também acho que não é uma questão de tudo ou nada) aumentando sim o meu grau de exigência.
Quanto à música não me parece deslocado e espero que continues. Quando comentei algures que preferia “perder” o meu tempo a dinamizar a Alta noutras vertentes em vez de só reclamar a falta de passadeiras, por exemplo, era nessa perspectiva. Esperemos que as questões básicas acabem por se resolver e fique tempo para o resto. Além dos passeios de bicicleta espero que possamos criar outras actividades - sessões de leitura, aulas de movimento, em especial para os mais idosos, concertos no Parque das Conchas (como no auditório ao ar livre da Gulbenkian), exposições, etc. Se houver procura acho que será viável. Mas para isso é preciso que sobeje tempo às pessoas (e também algum dinheiro). Que se aposte aqui nas mobilidades sustentáveis e numa rede de transportes eficaz que encurte a distância ao centro, porque também não consigo entender Lisboa sem uma ligação ao rio (e temos que perceber o que é que a APL quer fazer da zona ribeirinha, que deve ser devolvida aos lisboetas e não privatizada). Espero que a recuperação da velha Lisboa não seja incompatível com a vivência nos novos bairros e vice versa. O turismo poderá ajudar. Seria preferível tornar o rio um porto de chegada de turistas do que um terminhal de contentores. Mas também aqui os lobbies são muitos ... e maus e não lhes interessa que o povo seja culto porque se tornaria mais informado e exigente. É triste mas é a realidade imposta pela nossa classe política-dirigente. Soluções? Um lobby bom que acabe com a inércia?
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