quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O princípio de tudo




Gustave Courbet (1819-1877)The Origin of the World1866Oil on canvasH. 46; W. 55 cmParis, Musée d'Orsay



Incomoda-vos esta imagem? A mim também, talvez não pelas mesmas razões.


É natural, somos o produto de séculos de relação envergonhada com o sexo. Quantos de nós não ouviram em criança frases de opróbrio, não mexas, não olhes, não fales? Cumulativamente, esta é uma obra deliberadamente provocadora, não só porque mostra mas pelo modo como mostra: ao encobrir o rosto do modelo, ao não permitir a identificação - ou cumplicidade - que a troca de olhares entre observador e observado permitiria, induz naquele a ideia de que o faz enquanto intruso. Induz a culpa de quem vê sem ser convidado.

O que não é natural é que - 35 anos depois de uma mudança de regime que tinha como um dos objectivos máximos a garantia do direito de cada um à liberdade de expressão - esta imagem, por integrar a capa de um livro, tenha suscitado a sua apreensão por uma brigada da PSP transvestida em polícia de costumes. O que não é natural é a sucessão de "castigos de opinião" que vêm assombrando os anos de mandato do governo de um partido que se anuncia de esquerda.

O quadro que é demitido por contar uma piada; os sindicalistas que recebem uma visita da polícia; o corso carnavalesco que é censurado por apresentar uma página de resultados do google; 5 livros que são apreendidos por terem na capa uma imagem considerada "pornográfica".

Não é o Governo que dá estas indicações. São as pequenas almas, herdeiras dessa gloriosa tradição lusa, descendente das queixinhas à Inquisição ou da bufaria salazarista. As almas que nos habitam e que nenhuma integração europeia parece reformar. Hoje a censura é em nome da moralidade, amanhã será em nome da normalidade, no futuro porque sim.

O mais estranho é a placidez com que tudo isto é acolhido. A sornice com que se encara a vida política. A apatia com que se enfrentam os desafios cívicos. 

Estamos mortos. E só mesmo umas pernas escanchadas com uma passarinha peluda é que nos parecem fazer protestar.

Que tristeza.



2 comentários:

Anónimo disse...

"Não é o Governo que dá estas indicações" ponto e vírgula. Dá-lhes com certeza voz. Não cai nada bem que o Magalhães distribuído a tanta criancinha inocente (e em alguns casos retirado logo a seguir quando as cameras de televisão desaparecem!) não esteja protegido contra conteúdos menos próprios. Ou já se esqueceram de uma certa Directora Regional de Educação, nomeada por este Governo, que envenenada pela tal "bufaria salazarista" colocou um processo disciplinar a um professor por este ter contado uma piada acerca do PM? Nada é feito com isenção, nem a actuação do Mnistério Público.

Ana

Pedro Cruz Gomes disse...

Portugal ainda é - pelo menos formalmente - uma democracia. Cabe a todos exercer os seus direitos cívicos e intervir na denúncia e na correcção do que entende ser pernicioso para a vida em comum.

O nosso mal não reside nos políticos: eles são apenas emanação do que somos enquanto sociedade. Quando é que estaremos dispostos a perceber que não são "eles" que comandam a nossa vida? Quando é que estaremos dispostos a percorrer o "quilómetro extra" para nos melhorarmos enquanto sociedade?