Não sendo uma leitura propriamente agradável, é um livro com muita informação que descreve com alguma minúcia as políticas urbanas em Lisboa durante o salazarismo, fruto duma tese de mestrado em Geografia na FLL orientada por Jorge Gaspar. Uma história longe de linear, com períodos mais dirigistas e autoritários e outros mais liberais que culminaram na rebaldaria que se sabe e se prolongou até hoje, com a CML sempre a debater-se com a falta de dinheiro e de poder real face ao estado e à influência neste dos privados -- à excepção do período em que a acumulação do cargo de MOP com o de presidente da CML por Duarte Pacheco levou à atribuição à CML de autonomia financeira e decisória, que desapareceu (legislativamente e tudo) com a morte do ministro-autarca.
Excertos da Nota Final:
O planeamento municipal assentou num sistema burocrático, não participado e pouco operacional, por vezes com fugas à lei para realizar obra. Quase sempre o Plano não teve em conta as possibilidades de realização, daí as constantes revisões.
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Os Planos directores estiveram sempre em sintonia com o que de mais avançado se fazia (...) no estrangeiro.
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(...) A capacidade da CML conduzir a organização do espaço esteve muito limitada pelo facto de o planeamento municipal ter estado amputado dos dois vectores que eram a sua razão de ser: o Plano e os meios de execução do mesmo.
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Houve frequentes vezes uma total falta de coordenação entre projectos da CML e do Estado, como, por exemplo, no caso do Plano do Metropolitano.
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As relações com as entidades públicas com jurisdição própria dentro dos limites da cidade, como é o caso da AGPL [actual APL] e CP, primaram (...) pela não coordenação e conflitualidade.
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Os diversos programas [de habitação social] distinguiram-se pela qualidade dos acabamentos, dimensões, custos, equipamentos colectivos e aspectos formais e dirigiram-se a fracções distintas da base social de apoio ao Estado Novo [embora por vezes os beneficiários de facto tenham sido estratos sociais mais altos, graças a diversos esquemas, como o autor explica noutro lugar].
Fomentou sempre a coexistência de habitações para as várias categorias sociais, o que era visto como característica dos bairros tradicionais de Lisboa, mas, ao mesmo tempo, teve sempre uma preocupação clara com a hierarquização social.
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O município não teve meios para intervir ou controlar a dinâmica económica dos agentes económicos e do próprio Estado, daí a completa dependência do município e dos seus Planos neste domínio. O planeamento consistiu em em criar as condições para o desenvolvimento das tendências locativas manifestadas pelos agentes privados (...).
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Em relação aos serviços da administração central, verificou-se uma dependência completa da CML e toda a actuação do planeamento se condicionou às decisões daquela.
Como se vê, em quase todos os aspectos estas descrições se poderiam aplicar ao período pós-1974, sendo uma das excepções as características dos programas de habitação social.
Quanto à "coexistência de habitações para as várias categorias sociais": parece-me que esta linha foi totalmente abandonada depois de 1974, passando-se a fazer o contrário -- bairros de classe média para um lado e bairros de realojamento para outro, com opção pela construção em altura supostamente fomentando as relações interfamiliares, com os resultados que se conhece. Com as melhores intenções certamente, e suponho que seguindo também as tendência internacionais da época, mas com um atraso considerável que levou a que se proseguisse nessa linha quando lá fora ela ia sendo abandonada pelos resultados desastrosos, que levaram inclusive a demolições como último recurso.
Pelo pouco que sei, a Alta é provavelmente o primeiro caso em que é retomada a filosofia da coexistência de estratos sociais em simultâneo com a hierarquização social do espaço. Estarei enganado?
5 comentários:
É curioso que a democracia e a prevalência de govermos de esquerda no pós-25 de Abril tenha tido no urbanismo os mesmos resultados do que na educação: à força de querer tornar mais equalitário o acesso à habitação acabou por acentuar o fosso entre classes.
Não sei se as politicas de bairros "sociais" da ditadura favoreceram mais as classes com maior poder económico. Admito que houve muitos casos de compadrio e de agregados familiares bem de vida que beneficiaram de casas alugadas a preços módicos. Mas também conheci muita gente de classe média baixa que ficaram com a sua casa após 25 anos de aluguer. Desde os bairros "salazaristas" como os da Encarnação e Madre Deus até ao complexo Olivais.
Mais uma vez: no pós-25 de Abril, onde é que isto voltou a acontecer?
Só no Bairro da Cruz Vermelha, penso...
Curiosamente, os antigos SAAL estão a ser ocupados pela classe média. Mas isso é outra história, não é?
Tens razão e eu ia mesmo corrigir isso. Houve várias situações diferentes. De um modo geral, o que se criticava (inclusive a própria CML) era as rendas nunca serem suficientemente baixas para serem acessíveis aos mais pobres e portanto nunca se conseguir impedir a proliferação de barracas (a não ser quando havia realojamentos devidos à própria construção dos bairros ou a grandes obras públicas como a Ponte), para além de nunca se ter conseguido acompanhar as necessidades provocadas pelo constante afluxo de novos habitantes a Lisboa nesses anos. Depois, durante muito tempo o acesso esteve limitado aos sócios dos sindicatos nacionais e funcionários públicos. Parece que depois de cerca de 1950 as casas de renda limitada passaram a ser acessíveis a qualquer pessoa e aí sim houve problemas (casas boas de mais com as da Av. Paris), e também houve quem contornasse a lei recorrendo à propriedade horizontal depois de receber os benefícios.
O que faz impressão é verificar como a construção de habitação para as "classes modestas" foi uma preocupação ao longo de todo o Estado Novo, e não era só retórica, fez-se muito apesar de insuficiente. E também verificar que aconteceu muito pouco desde 1974, e quase tudo o que aconteceu vinha de antes, caso da EPUL e de Chelas.
Há um comentário algures, já não sei se do Duarte Pacheco, a dizer "atenção, isto não é socialismo!" Houve uma prática seguida especialmente durante o tempo do DP, e que ainda hoje é prática corrente um muitos países (incluindo nos EUA, parece-me), que era cobrar aos proprietários uma taxa sobre as mais-valias decorrentes da urbanização dos terrenos e da construção de infra-estruturas, que revertia para novos investimentos. (Quando a REFER há dias falou em cobrar uma taxa semelhante pelo TGV levantaram-se logo vozes neoliberais escandalizadas.) Outra boa ideia foi o que se fez em Alvalade, em que as casas nas vias principais como a Av Roma eram de renda livre e as mais-valias assim obtidas pelos empreteiros serviam para compensar os menores lucros obtidos com as casas de renda económica que ficam no interior do bairro.
Há uma situação caricata, que é a certa altura ter saído uma lei que a obrigava a que as expropriações só podiam ser feitas com plano de urbanização, mas depois o governo nunca aprovava os planos da CML, que ficava assim de mãos atadas.
Uma coisa que o livro não esclarece e que permanece para mim um mistério é a razão pela qual algures nos anos 1960 houve uma grande desregulamentação e começaram a aparecer aquelas urbanizações de prédios altíssimos uns em cima dos outros com ruas estreitinhas. Caso de parte de Benfica em Lisboa, mas também um pouco por todo o país. P.ex. na linha de Sintra distingue-se perfeitamente o que foi feito antes e depois. O subúrbio onde eu cresci (Rio de Mouro) era uma coisa planeada, um pouco ao estilo de Alvalade, com moradias e prédios baixos dispostos à volta de uma escola. Depois, em finais dos anos 1960 começaram a urbanizar a encosta da Rinchoa naquele estilo amontado de prédios. Há dias estive na Amadora, onde não ia há uns anos, e é incrível o contraste entre o centro, ou parte dele, com prédios de 3-4 andares, aquilo até tem um ar simpático, e depois a fase J. Pimenta e posterior, que é um pesadelo. Ainda me lembro dos anúncios na TV, portanto aquilo deve ter sido feito por volta de 1970.
Há coisas no livro que até dão vontade de rir, como o plano de 1967 alertar para a necessidade de evitar o estrangulamento do trânsito no Marquês, ou a convicção de que o aeroporto sairia em breve da Portela para a margem sul. Ou a necessidade de coordenar políticas de habitação com os concelhos limítrofes, que o planeamento tinha de ser feito à escala metropolitana. Etc.
Pedros,
O post é, ou ajuda a fazer, um bom retrato de mais um mau exemplo de inconsistência e desarticulação do que por cá se vai fazendo (ou melhor, deixando fazer).
Características como
. a estruturação estratégica do pensamento,
. a escolha de princípios e valores fundamentais,
. a capacidade de definir objectivos importantes e perceber a importância desses objectivos,
. a capacidade de distinguir qualitativamente e/ou quantitativamente diferentes objectivos,
. o pragmatismo (não confundir com a "martelada" do "chico esperto" ou com a “mentirinha” com que se despacha a situação para “debaixo do tapete”),
. a capacidade de conceber objectivos condicionados aos meios disponíveis e de dispor estes em função daqueles,
. a capacidade de desenvolver trabalho por forma a obter resultados,
. a capacidade de preparar e desenvolver o trabalho para o entregar à próxima equipa que pegar nele (qualquer que venha a ser essa equipa),
. enfim, a capacidade de ser consequente
não são propriamente características que definem a contemporaneidade de Portugal. Também não definem o seu passado.
Não quer dizer que o País nunca produza bons projectos, com "cabeça e pés"; é verdade, já o fez. Mas não são situações constantes; vão sendo episódios quase heróicos... Ou mesmo verdadeiramente heróicos. Ou ainda processos individuais “meteóricos”.
De qualquer forma os bons exemplos mostram que é possível fazermos Bem e bem.
Pedros,
E a propósito do último parágrafo do post, deve ser dito, por corresponder à verdade, que a CML se está a comportar inacreditavelmente perante o (não) desenvolvimento do PUAL e perante todos os que acreditaram e para cá vieram viver (! Viver !).
Cantou a história do bandido, desenvolveu uma “parceria estratégica” “público-privada” (palavras lindas) porque tinha um problema de bairros degradados de que se queria ver livre. Assim que se fez o realojamento, ficou com o seu problema principal resolvido, fechou a loja, tchauzinho aí e obrigadinho.
Isto é ser sério?
Obrigadinho?
A verdade é que as políticas urbanas do Estado Novo em Lisboa falharam em vários aspectos importantes: não foram capazes de absorver o crescimento da população e evitar a proliferação de barracas; não se fez a reabilitação das zonas históricas; houve zonas de classe média média-baixa que foram marginalizadas e entregues a promotores sem grande controlo, caso da encosta da Graça.
O caso de maior sucesso, Alvalade, beneficiou de condições excepcionais nas expropriações e no financiamento, e vontade de mostrar obra no contexto da grande celebração do regime que foram os Centenários. Já em 1967 a CML concluía que para concluir a expensão urbana era precisa uma verba astronómica e irrealizável.
Os 10 anos seguintes ao 25 de Abril foram de penúria total, e depois disso nunca houve condições políticas para impor as medidas drásticas que seriam necessárias, por demasiado controversas, fosse por atingirem os interesses dos habitantes fosse por atingirem os interesses dos proprietários.
Quanto ao impasse que parece haver na Alta em relação à cedência de terrenos por parte da CML, não percebo bem, mas parece encaixar na tradição de o "Plano não ter em conta as possibilidades de realização". O plano de Alvalade, com uma área inferior (230 ha) demorou 15 anos a ser concluído.
A questão das vendas estarem a ser inferiores ao esperado faz-me lembrar o caso, referido neste livro, da Encarnação, em que a procura foi inferior ao esperado, segundo o autor devido à escassez de transportes públicos. É verdade que as coisas mudaram muito desde aí, mas é provável que isso continue a ser bastante importante.
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