quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

A Cidade Imaginada (IV)

A propósito da anunciada vaga de fundo que se tenta erguer a favor da criação da casa-museu de Cesário Verde (poetas em museu... mensagens em garrafas?) relembro a leitaria que Pessoa habitou perto da Estefânia, há muito transformada em pensão Estrelinha, reminiscência do nome original - Estrela d'Alva.
Muitos houve que desistiram de a encontrar, na constante mutação que sofrem os becos das avenidas novas mas por lá ela ainda permanece, vetusta e distante, parada involuntariamente no que terá sido o ambiente da Lisboa de Rosa Araújo nos primeiros decénios do século XX. Nunca compreendi a sua arquitectura interior, tantas as camadas que se soprepõem de intervenções múltiplas, bem-intencionadas umas, cúpidas quase todas. Há quartos que só têem acesso através de outros, passagens que nos levam onde não tencionávamos chegar, números de portas repetidos para alcovas diferentes. Mãos desconhecidas rabiscaram poemas incompletos, frases desconexas, rimas esdrúxulas nas manchadas paredes dos estreitos corredores. Os quartos são despojados, uma cama de ferro estreita, uma cómoda alta, dois cabides na parede, lavatório. Numa semana em que lá permaneci fui perseguido a todas as horas pelas dolentes badaladas de sinos de uma igreja próxima. Num feriado de Verão ocupei um quarto onde me surpreendeu uma inesperada brisa do rio que não vi mas que me lembrou o rio que passa na aldeia dos meus avós.
Um dia um estrangeiro questionou-me acerca da sua localização exacta quando ensaiávamos uma conversa após simultânea e infrutífera busca do jazigo do poeta no Cemitério dos Prazeres. Não fui capaz de lha dizer.
Há segredos que não se contam nem ao mais estranho dos estrangeiros.

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