domingo, 20 de julho de 2008

Em três anos, um grupo de escolas problemáticas transformou-se num modelo a seguir

Se os males da Quinta da Fonte entravam na escola, a escola tinha de descer ao bairro
20.07.2008, José Manuel Fernandes e Raquel Abecasis (Renascença)

Em três anos, um grupo de escolas problemáticas transformou-se num modelo a seguir


Félix Bolaño conhece a Quinta de Fonte por dentro e por fora. E os seus habitantes também. Como presidente do Agrupamento de Escolas da Apelação, mudou as escolas e empenhou-se em mudar o bairro. O seu trabalho levou mesmo o Presidente da República a visitar a escola para aí falar sobre como, mesmo numa zona difícil, é possível mobilizar os jovens para a cidadania. O que mostra que poucos conhecerão tão bem aquele bairro, os seus males e as suas virtudes como Félix Bolaño.

Ficou surpreendido com o tiroteio da semana passada?
Sim e não. O trabalho de intervenção social só tem resultados a longo prazo e é um caminho com altos e baixos. O que interessa é que se progrida, que não se desista.

As autoridades querem que a população que fugiu regresse, esta recusa-se. O que aconselha?
Para cada problema é preciso encontrar sempre uma solução, e cada problema tem de ser visto como uma oportunidade. Neste caso, a oportunidade é tentar que aumente o diálogo com os que têm mais dificuldade de integração. O que verifico no terreno é que se geraram ondas de solidariedade dentro do bairro e que este está mais disposto a aceitar as pessoas de etnia cigana. Por isso, o problema é eles aceitarem voltar e trabalharmos para fazer daquele bairro um bairro cada vez melhor.

Como é que se trabalha numa zona daquelas?
Há problemas de polícia, há carências sociais (90 por cento das famílias beneficiam de apoios sociais), mas também parece haver quem tenha um nível de vida que não se esperaria encontrar num bairro social...
O meu papel é o de criar, em conjunto com todas as entidades que estão no terreno, oportunidades de inclusão, mesmo para os criminosos. Cada marginal que opta por cumprir com as regras da sociedade representa uma vitória para nós. E, quando isso sucede, normalmente os que se tornam cidadãos cumpridores tornam-se também nos nossos melhores aliados no terreno.

Como é que, em quatro anos, transformou a escola num agente de intervenção social?
Quando aqui cheguei, e formei a minha equipa, deparei com uma escola fechada, que tinha virado as costas aos problemas do bairro. Por isso, o clima do bairro e da escola piorava de ano para ano.

O que se passava na escola?
Indisciplina, agressividade, a percepção pelos alunos de que a escola lhes queria mal...

O que é hoje a Quinta da Fonte? De fora parece um bairro com uma qualidade de construção e do espaço urbano bem superior à de muitos outros bairros sociais...
Sim, porque esteve para ser uma cooperativa de habitação. Mas depois o Estado despejou lá as pessoas desalojadas pela Expo, sem um mínimo de preparação.

Isso potenciou os problemas dos bairros de barracas?
A passagem da horizontalidade de um bairro de barracas para a verticalidade de um bairro social cria sempre problemas se não for bem acompanhada. Num bairro de barracas eu tenho a minha, ao meu lado está um amigo, criam-se comunidades onde os membros se entreajudam. Lá dentro, com os de dentro, nem costuma haver criminalidade. Mas, quando se passa para a verticalidade, as relações de vizinhança desfazem-se e as famílias são colocadas junto de vizinhos que não conhecem, muitas vezes com formas de vida diferentes.

Passaram, entretanto, dez anos...
É difícil recriar esses laços sem uma intervenção adequada. Quando voltei à escola apercebi-me de que a conflitualidade do bairro vinha para dentro da escola.

E como reagiram?
Abrindo a escola à comunidade. Não para pedir, antes para oferecer. Por exemplo: sabendo que a Segurança Social não tem meios, oferecemo-nos para ser interlocutores, para fazer tudo o que fosse necessário como mediadores porque conhecíamos melhor o bairro. O mesmo com a Câmara de Loures e por aí adiante, criando uma rede social com os nossos parceiros...

Que parceiros?

Para além da câmara e da Segurança Social, os clubes, a Pastoral dos Ciganos, a Ajuda de Mãe, os Médicos do Mundo, a PSP. Estas instituições estavam soltas, cada uma actuava pontualmente e de forma dirigista. O que fizemos foi sentar todos à mesa e passarmos a actuar de forma coordenada.

Mas não há choque entre as comunidades de origem africana e as de etnia cigana? O que falhou no vosso esforço de integração?
Integrar comunidades é muito difícil, sobretudo quando trabalhamos com pessoas de etnia cigana, que é mais fechada e a quem não podemos exigir que mude a sua forma de ser e de estar.

Quando o Presidente veio à vossa escola, nas imagens só se viam africanos, não ciganos...
Perto de 90 por cento dos alunos são de origem africana, até porque nos 2.º e 3.º ciclos a etnia cigana tem tendência a desistir da escola e temos feito tudo para a convencer de que vale a pena continuar. Para isso temos de combinar a educação formal, a que o Ministério nos obriga, e a educação não formal, que tem tanta ou mais importância que seguir os currículos.

O que é a educação não formal?
É transmitir competências sociais tão importantes como saber estar em grupo, conseguir ser diferente do grupo, ser capaz de ser minoritário e respeitar os outros, sabendo que os outros o respeitam, conseguir formular um projecto de vida, dizer o que se quer ser quando se for adulto. É também saber resolver problemas de relacionamento, saber pedir ajuda, não ter vergonha, no fundo, responder aos problemas de um bairro onde há muitos ilegais que têm medo e não sabem o que fazer. A nossa preocupação é dar-lhes ferramentas para viverem melhor na nossa sociedade.

E há famílias desestruturadas?

Muitas, sobretudo devido à instabilidade e às exigências do mercado de trabalho. Muitos pais trabalham longe e não podem regressar para as famílias, muitas mães fazem horários nas limpezas que as impedem de estar com os filhos. E há também os que nem estão preparados para ter filhos...

Mães adolescentes?
Sim, muitas, mas isso passa-se em quase todos os bairros sociais. Aqui, como em Espanha ou na Alemanha. Não podemos é ficar agarrados aos problemas. Se conseguirmos dar outras perspectivas de vida às pessoas, elas aderem. Hoje temos ex-alunos que, em vez de ficarem num bar a beber cerveja, colaboram, trazem-nos pessoas, trabalham para a comunidade. Um bairro social tem líderes como não há em muitas outras zonas, e são lideranças fortes. Se conseguirmos que venham para o lado da comunidade, e não para o da criminalidade, são lideranças com um potencial fantástico.

"Não houve nem um conflito étnico nem uma troca de tiros entre gangues"


Ainda há ciganos a viver no bairro, já há jovens africanos disponíveis para acolher os que fugiram. Félix Bolaños acredita na "gente boa" da Quinta da Fonte.

Como explica o que aconteceu?

Primeiro que tudo é preciso saber o que realmente aconteceu. A minha leitura pessoal é que nem houve um conflito étnico nem uma troca de tiros entre gangues. Tudo começou, ao que pude apurar falando com as pessoas do bairro, com uma discussão, quinta--feira à noite, entre um marido e uma mulher que gerou uma confusão; no meio da confusão, um dos que se envolveram estava mais alcoolizado, tinha uma arma e começou a disparar indiscriminadamente. Ora, como outros que lá estavam também têm armas em casa, foram buscá-las para se defenderem.

Mas isso envolveu ciganos e africanos?

O indivíduo que estava alcoolizado era de etnia cigana e, depois do tiroteio, a comunidade cigana ficou à espera de uma retaliação da comunidade de origem africana. Que não houve, só que tiveram medo e saíram do bairro. O que depois aconteceu foi uma pilhagem, pois muitos aproveitaram-se das casas dos que saíram terem ficado vazias. Houve um grupo de delinquentes que o fez ali, como podia ter feito nos melhores bairros. Na sexta-feira os ciganos regressaram, armados, à espera da tal retaliação. Quando chegaram não foram recebidos com tiros, mas quando viram o espectáculo degradante das suas casas pilhadas, foram para a rua e dispararam, mas dispararam contra ninguém. Ninguém do outro lado foi buscar uma arma, e podemos perceber que não houve troca de tiros se virmos as imagens com atenção. Ninguém dispara e se esconde, viram as costas e vão-se embora tranquilamente. Por isso é que digo que não houve troca de tiros: houve um descarregar de raiva da etnia cigana quando viu as suas casas destruídas e roubadas.

Como se conserta o mal feito?

Uma das qualidades que procurámos desenvolver foi a resiliência, a capacidade de enfrentar dificuldades e não desistir, e essa resiliência está a permitir que a comunidade esteja a reagir bem, a dizer que quer um bairro melhor e a fazer uma série de actividades para mostrar que o bairro continua a progredir. Há aqui muita gente boa, honesta, trabalhadora, com capacidade de liderança, e que se está a organizar. O que se pretende transmitir aos que saíram da Quinta da Fonte é que o bairro não é o que apareceu naquelas imagens, antes quer arrancar para uma vida melhor. A população está a ir ter com a etnia cigana, os jovens estão a dizer-lhes para voltarem. Mas claro que ainda há tensão e a etnia cigana tem de querer voltar para o bairro.

Por que é que, mesmo antes destes incidentes, o número de membros da etnia cigana já era muito menor do que há dez anos?
Porque gostam de estar numa posição dominante no seu espaço e, por isso, conforme ia aumento a desproporção relativamente aos africanos, iam-se sentindo menos à-vontade. Mesmo assim, nem todos saíram do bairro: há famílias ciganas que continuaram lá depois dos incidentes, calmas e tranquilas.

A intervenção da escola parece ter-se traduzido mais no apoio a organizações que já existiam, em ter ajudado a coordenar o seu trabalho com outras organizações da sociedade civil e em aproveitar programas que também já existiam. Já se tem escrito que é necessário investir muito dinheiro em bairros como a Quinta da Fonte. É um problema de dinheiro ou de forma de trabalhar com as pessoas?
De forma de trabalhar com as pessoas. É evidente que é preciso dinheiro, mas não tem sequer de vir todo do mesmo lado. Fazemos um desafio à sociedade civil, pedimos o seu envolvimento, e até temos conseguido o apoio de empresas privadas. A participação é o mais importante.

A sua atitude é uma raridade?
Não, mas também não encontro outra forma de actuar numa escola que se encontrava perto daquele bairro social e tinha todo o tipo de problemas. Até por protecção, pois a melhor forma de proteger a escola era conhecer o bairro, interagir com o bairro. Sentimo-nos protegidos pelo conhecimento que temos das próprias pessoas. Para além de acreditarmos que a escola tem de ter um papel líder na sociedade e, especificamente, na sua comunidade.

3 comentários:

Ana B. disse...

Vale a pena ler a entrevista do Público a Félix Bolaño e reflectir sobre o que cada um pode fazer ao pé da porta e a necessidade de coordenar esforços num mesmo sentido.

Anónimo disse...

pois é, bem tentaram fazer isso na D.José I mas sem sucesso. Os alunos e pais dos alunos não estavam para ai virados... preferem dizer e fazer mal à espera que lhes deem tudo! Miséria! Muitos deles não absicam dos ténis xpto + os telemóveis ytzo e ainda reevidicam o rendimento minimo nacional... cambada de chulos!!!

Ana B. disse...

Não concordo. O Agrupamento de escolas da D.José I tem feito um esforço de abertura à Comunidade. Aos alunos, aos pais, a outros parceiros, ao bairro.

Como refere Félix Bolaño, "o trabalho de intervenção social só tem resultados a longo prazo e é um caminho com altos e baixos. O que interessa é que se progrida, que não se desista". Muitas vezes é esta teimosia que falta. A de não desanimar perante a primeira contrariedade. E neste trabalho haverá seguramente muitas... É preciso potenciar as pequenas vitórias e fazer com que estas contagiem e tragam outras vitórias.